A advogada Leonor Caldeira, que ganhou um processo contra o líder do Chega, André Ventura, é a vencedora do Prémio Nelson Mandela deste ano, atribuído pela associação ProPública, pela defesa dos direitos humanos e justiça climática.

Num comunicado, a que a Lusa teve acesso, a direção da ProPública — Direito e Cidadania anuncia esta quinta-feira, dia do advogado, que “deliberou, por unanimidade, atribuir o Prémio Nelson Mandela, relativo ao ano 2022, à advogada Leonor Caldeira”.

Leonor Caldeira tem-se distinguido na sua ainda curta carreira de advogada como uma incansável defensora do interesse coletivo, privilegiando a litigância em defesa da justiça climática e dos direitos humanos”, refere-se no comunicado.

A associação acrescenta que “além do seu inspirador idealismo, a advogada tem dado provas, nas suas intervenções em tribunal, de uma criatividade e eficácia dignas de elogio por parte de colegas e magistrados”. Destacam ainda que com a atribuição do prémio a uma advogada com 28 anos pretende “homenagear a jovem geração de advogados portugueses, que não desiste de lutar por uma sociedade com melhor justiça, maior responsabilidade e sem discriminações de qualquer tipo”.

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Numa entrevista à Lusa, no dia em que foi anunciada o prémio, a advogada, de 28 anos, afirmou que foi “com surpresa” que recebeu a notícia, sobretudo, quando, no ano passado, o vencedor foi Francisco Teixeira da Mota, um advogado “com uma carreira longuíssima na defesa dos direitos humanos e, muito em particular, da liberdade de expressão e dos jornalistas”, da qual sente que “naturalmente” a sua está longe.

A advogada realçou que o prémio foi para si “um incentivo” para prosseguir a carreira assente na prática na litigância da justiça climática e dos direitos humanos.

O valor do prémio, de dez mil euros, dá-lhe a possibilidade de aceitar mais processos “pro bono”, que sempre fez, embora não tantos como gostaria “por falta de disponibilidade financeira”. “Permite-me ter mais espaço na agenda para trabalhar para pessoas que não me podem pagar”, afirmou.

Leonor Caldeira quer criar um projeto de advocacia de “interesse público” em Portugal, país onde acha que faltam organizações deste tipo e os advogados dos mais vulneráveis têm as piores remunerações.

Para a jurista, os advogados que “trabalham em termos de direitos humanos e em prol de quem está em maior situação de vulnerabilidade social e económica são os mais mal remunerados”.

“É verdade que temos [em Portugal] o apoio judiciário, mas este está em muito mau estado, muito maltratado, porque temos uma tabela de honorários que não é atualizada desde 2004”, sublinhou.

Segundo a advogada, em Portugal “faltam algumas estruturas de advocacia da prática para o interesse público”.

“Historicamente — como, aliás, o exemplo de Nelson Mandela demonstra, e em Portugal também temos outros exemplos, durante a ditadura – mostra como os advogados são instrumentos muito poderosos para a defesa dos direitos, das liberdades e das garantias”, mas “faz muita falta uma prática de litigância estratégica e da prática do direito enquanto elemento transformador para o progresso social, económico, ecológico”, defendeu.

Para a vencedora do Prémio Nelson Mandela deste ano, “o direito pode trazer esse progresso”.

A advogada referiu que trabalhar num escritório ensinou-lhe muito, mas continua a sentir que o seu lugar “é mais na prática do interesse público, seja climática, seja de direitos humanos”, tendo o sonho de “criar uma estrutura de advocacia de interesse público”.

“Eu tenho mesmo esse sonho, mas não sei se será em breve que o vou concretizar, porque sinto que (…) preciso de mais experiência, porque é uma grande responsabilidade estar à frente de uma organização. [….] Mas será uma coisa que, quando me sentir madura e preparada, irei com certeza criar”, disse à Lusa.

Leonor Caldeira disse que sempre sentiu o direito como uma “ferramenta muito poderosa”, não só enquanto advogada, mas como cidadã comum e manifestou a sua atração “por processos judiciais que possam provocar progresso, tanto pelos direitos das mulheres como pelos direitos dos trabalhadores, o direito dos presidiários, pela ação climática”.

Recordando que Portugal já foi condenado “sucessivamente no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pelas condições infra-humanas que dá aos seus reclusos”, Leonor Caldeira concluiu que há vários problemas para combater no país, como o da desproteção a que as trabalhadoras independentes estão sujeitas, sobretudo na maternidade.

Licenciada pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a advogada, que tirou o “Master of Laws” na Queen Mary University of London — School of Law, teve como um dos seus processos mediáticos mais recentes em Portugal o da defesa da família Cóxi, contra o líder do Chega, André Ventura, tendo ganhado a causa.

A decisão da justiça portuguesa que condenou o Chega e o seu presidente refere-se à exibição, por André Ventura, durante o debate televisivo das presidenciais com Marcelo Rebelo de Sousa, da fotografia de sete pessoas da mesma família, residentes no Bairro da Jamaica, com o Presidente da República, quando este visitou o bairro em fevereiro de 2019, assim como à utilização pelo partido, na sua conta de Twitter, da mesma foto para a opor a uma imagem de Ventura com homens brancos, um deles com uma t-shirt do Movimento Zero, com a legenda “Eu prefiro os portugueses de bem”.

A juíza Fátima Preto, da primeira instância do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, reconheceu “a ilicitude das ofensas ao direito à honra e ao direito à imagem” dos autores da ação (os sete membros da família Coxi), que Leonor Caldeira defendeu, e condenou André Ventura e o Chega a retratarem-se dessas ofensas nos locais onde as concretizaram.

Leonor Caldeira é uma advogada em prática individual, centrada na litigância estratégica de direitos humanos junto dos tribunais portugueses e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), com principal foco nas áreas de liberdade de expressão e direito da comunicação social, habitação condigna e arrendamento, discriminação racial e violência policial e de género, negligência médica e violência obstetrícia.

Além disso, é membro do conselho fiscal e advogada consultora do “Projeto Inocência”, uma associação sem fins lucrativos que junta jornalistas e advogados, com o propósito de investigar casos de cidadãos que se encontram a cumprir pena de prisão e se afirmem inocentes, desde o início do processo e em prejuízo próprio (isto é, abdicando de quaisquer atenuantes de pena advenientes da confissão), refere o currículo da vencedora.

Entre 2020 e 2021, a jurista trabalhou para a ClientEarth, uma organização não-governamental ambiental dedicada ao ativismo jurídico e judicial climático para a resolução dos principais desafios nesta área, através do desenvolvimento, implementação e execução do direito do ambiente e respetivas políticas públicas, no plano nacional e europeu.

Desde 2016 até agora, Leonor Caldeira é advogada, em regime pro bono na defesa de cidadãos em situação de insuficiência económica e especial vulnerabilidade social, em causas conexas com direitos humanos, sociais e económicos.

Leonor Caldeira ganha este prémio precisamente 80 anos depois de Nelson Mandela ter começado a exercer a profissão de advogado e 70 anos após este ter estabelecido a sociedade de advogados Mandela & Tambo, o primeiro escritório sul-africano inteiramente dedicado ao direito do interesse público.

O prémio Nelson Mandela da ProPública, no montante de dez mil euros, será entregue à advogada em 18 julho, Dia Internacional Nelson Mandela, data do nascimento do antigo Presidente da África do Sul.