Os bispos católicos portugueses continuam à espera de que o Vaticano se pronuncie para que a comissão independente que está a investigar os abusos sexuais de menores na Igreja possa começar a consultar os arquivos das 21 dioceses portuguesas em busca de dados que mostrem como a hierarquia eclesiástica lidou com queixas de abuso no passado. Isto quase dois meses depois de a comissão independente ter anunciado que já tinha uma equipa de historiadores a trabalhar com as dioceses para este efeito e mais de um mês depois de a Conferência Episcopal ter prometido aos historiadores o acesso aos arquivos.

A informação foi confirmada na manhã desta quinta-feira pelo cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, nas manhãs da Rádio Observador, durante o programa Contra-Corrente.

D. Manuel Clemente foi questionado pelo publisher do Observador, José Manuel Fernandes, sobre em que ponto está o trabalho de acesso aos arquivos diocesanos — sobretudo depois de o Observador ter noticiado que a intervenção do embaixador da Santa Sé em Portugal tinha criado obstáculos no acesso aos arquivos e obrigado os bispos portugueses a assegurar uma autorização por parte do Vaticano, mesmo estando os bispos disponíveis para abrir as portas dos arquivos secretos.

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Em resposta, o cardeal-patriarca de Lisboa salientou que “o acesso aos arquivos tem de seguir aquilo que são as leis civis da proteção dados, que são muito estritas nesse campo”.

“De qualquer maneira, e creio que foi essa a reserva que se pôs quando também se criou uma comissão para o estudo dos arquivos — que está a fazer o seu trabalho, é gente muito competente nesse sentido —, é a conciliação de toda esta normatividade, quer civil, quer canónica”, explicou D. Manuel Clemente, antes de adiantar que a Conferência Episcopal ainda aguarda instruções de Roma nesse sentido. “Mas, uma vez esclarecido esse ponto — e a Conferência Episcopal apresentou esta questão, aliás, foi solicitada para o fazer, à Santa Sé, e a resposta que vier é aquilo que se vai fazer —, tudo aquilo que se puder fazer, faz-se.

Para o cardeal-patriarca de Lisboa, contudo, a consulta aos arquivos diocesanos poderá dar um contributo muito limitado para os esforços da comissão independente, uma vez que habitualmente a documentação presente no arquivo secreto é destruída ao fim de alguns anos, mantendo-se apenas uma súmula que dá somente conta da existência do caso. “Não sou conhecedor dos ditos arquivos, mas pelo que sou conhecedor da vida interna da Igreja, se me pergunta que aí se encontrará muita informação além daquela que se vai recolhendo da comissão independente? Talvez não tanto como às vezes se esperaria. Mas conciliar as duas fontes é bom para termos uma realidade mais definida.”

Desde o início do trabalho da comissão independente, em janeiro deste ano, a consulta dos arquivos eclesiásticos tem sido apontada como um dos fatores centrais da investigação, uma vez que naqueles arquivos poderão ser encontradas cartas e outros documentos que mostrem como a Igreja tratou (ou ignorou) casos de abuso sexual de menores ao longo das últimas décadas.

Contudo, também desde o início do trabalho da comissão houve discussões sobre o modo como este processo de consulta seria feito, uma vez que os arquivos estão sob jurisdição de cada um dos 21 bispos diocesanos de Portugal, e não ao cuidado da Conferência Episcopal, o organismo nacional que congrega os vários bispos e que mandatou a comissão independente para esta investigação. A existência de alguns bispos mais céticos ou resistentes à investigação levantava a dúvida sobre se poderia haver dioceses onde seria mais difícil para a comissão aceder aos documentos presentes nos arquivos.

O diálogo entre a comissão independente e a Conferência Episcopal culminou num entendimento em abril, quando ambos os organismos anunciaram que estava definido o modelo de acesso aos arquivos. A 12 de abril, a comissão independente anunciou que tinha criado uma equipa científica para consultar os arquivos da Igreja. A equipa é liderada pelo historiador Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho, e conta com a colaboração de vários especialistas das áreas da história e dos arquivos. O grupo de trabalho já estava no terreno e irá consultar os arquivos das dioceses portuguesas.

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Mais tarde, entre 25 e 28 de abril, reunidos em Assembleia Plenária em Fátima, os bispos portugueses anunciaram que estavam de acordo quanto à disponibilidade para abrir os arquivos diocesanos à comissão independente, designadamente através do grupo de trabalho liderado por Francisco Azevedo Mendes.

O problema surgiu precisamente nessa Assembleia Plenária, quando o núncio apostólico em Portugal, o arcebispo italiano Ivo Scapolo — uma figura com um passado controverso associado à crise dos abusos de menores na Igreja Católica no Chile —, considerou que não bastaria que cada bispo autorizasse o acesso aos seus arquivos. Era necessário, segundo Scapolo, que se chegasse a normas comuns entre todas as dioceses quanto ao respeito pelas regras civis e religiosas e um acordo com a Santa Sé, à semelhança do que havia ocorrido noutros países, como em França.

Aparentemente, a maioria dos bispos portugueses está disponível para abrir os arquivos à comissão independente. Porém, não foi isso que aconteceu em França, país em que houve bispos menos disponíveis para colaborar com a investigação. Naquele caso, a Conferência Episcopal Francesa decidiu fazer um decreto executivo determinando a suspensão de uma norma do direito canónico que dá ao bispo acesso exclusivo ao arquivo secreto, para todos os bispos franceses, no que respeitava à comissão independente para o tópico dos abusos de menores, o que obrigava todos os bispos a abrirem o seu arquivo secreto, mesmo contra a sua vontade, à comissão. Contudo, para que um decreto executivo de uma conferência episcopal tenha, efetivamente, força executiva, precisa de ser expressamente aprovado pela Santa Sé — algo que aconteceu no caso francês.

Até à intervenção do núncio apostólico, a Conferência Episcopal Portuguesa não tinha considerado necessário tomar uma decisão executiva destas, uma vez que os bispos tinham anunciado publicamente estar de acordo com a consulta dos arquivos por parte da equipa técnica. No caso português, para que uma decisão da CEP tenha força sobre todos os bispos, tem de ser aprovada por dois terços dos bispos com direito de voto na assembleia plenária e depois tem de receber aprovação do Vaticano.

No caso português, a interferência do núncio apostólico para que fosse formalizado um acordo do mesmo tipo foi entendida por alguns como uma forma de atrasar o trabalho da comissão.

Na sequência dessa intervenção do núncio, um grupo de bispos portugueses liderado pelo presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, foi chamado a Roma para uma reunião, que decorreu há duas semanas, com o objetivo de debater o acesso aos arquivos eclesiásticos em Portugal e o trabalho da comissão independente. De acordo com dados recolhidos pelo Observador, a Conferência Episcopal encontra-se agora em contactos com a Secretaria de Estado da Santa Sé para a produção de um documento uniforme que regule o acesso da comissão independente aos arquivos eclesiásticos. Antes de esse documento chegar a Portugal, o trabalho continua sem avançar.

A comissão independente é liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht — que foi um dos principais responsáveis pelo acompanhamento das vítimas do caso Casa Pia —, e conta ainda com a participação do psiquiatra Daniel Sampaio, a socióloga Ana Nunes de Almeida, o ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, a assistente social Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos.

Até ao momento, a comissão independente já recebeu mais de 300 testemunhos de abuso sexual de menores em Portugal e estima que essas denúncias sejam apenas a ponta de um icebergue composto por largas centenas de vítimas. A comissão independente pode ser contactada através de um conjunto de contactos disponíveis na sua página da internet. A previsão inicial era a de que o relatório final da comissão fosse publicado em 2022, mas os atrasos provocados por este processo conturbado de acesso aos arquivos poderão adiar a publicação do documento para o próximo ano, coincidindo com a visita do Papa Francisco a Portugal por ocasião da Jornada Mundial da Juventude.