O juiz de instrução Ivo Rosa voltou a violar “de forma grosseira” as regras de competência de hierarquia dos tribunais ao anular uma decisão do seu colega Carlos Alexandre que já tinha transitado em julgado e ao tornar-se a instância de recurso das suas próprias decisões, apropriando-se assim das competências do Tribunal da Relação de Lisboa.

Os desembargadores Guilherme Castanheira e João Abrunhosa não só acolheram os argumentos na íntegra do Ministério Público (MP) e do assistente Banco Espírito Santo (BES), como declararam o despacho de Ivo Rosa que levou ao levantamento do arresto do saldo de 700 mil euros de uma conta bancária de Maria João Bastos Salgado como juridicamente “inexistente” — o vício mais grave que existe na lei processual penal —, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa a que o Observador teve acesso.

Ivo Rosa devolve 700 mil euros a mulher de Salgado e diz que lesados não podem beneficiar de arrestos

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A decisão da Relação de Lisboa foi tomada no dia 2 de junho e faz com que o saldo da conta da mulher de Ricardo Salgado volte a estar à ordem dos autos do caso Universo Espírito Santo, tal como o juiz Carlos Alexandre tinha decidido anteriormente. Fica agora pendente um recurso da defesa de Salgado sobre essa decisão de Carlos Alexandre que será apreciado em breve pela Relação de Lisboa.

Anulou uma decisão do colega e usurpou poderes da Relação de Lisboa

Tudo começou quando o juiz Carlos Alexandre, então titular dos autos do Universo Espírito Santo, decretou o arresto preventivo da conta de Maria João Bastos Salgado a 12 de dezembro de 2017 por promoção do MP.

Ora, o juiz Ivo Rosa decidiu a 10 dezembro de 2021 anular esse despacho, quando tal estava legalmente vedado. O MP recorreu dessa decisão de Ivo Rosa por violar o caso julgado e representar uma exorbitação das suas competências e a Relação de Lisboa veio dar-lhe razão a 8 de março de 2022 — motivo pelo qual, aliás, foi aberto um processo disciplinar ao juiz de instrução criminal no Conselho Superior da Magistratura.

Conselho Superior Magistratura abre processo disciplinar a Ivo Rosa

Pior: sem esperar pelo recurso que o MP interpôs na Relação de Lisboa (o qual foi classificado como devolutivo pelo juiz Ivo Rosa), o magistrado ouviu Maria João Bastos, levantou o arresto no dia 26 de janeiro de 2022 e notificou de imediato o Deutsche Bank a cumprir a sua decisão.

O MP e o assistente BES, que é patrocinado pelos advogados Paulo Sá e Cunha e Miguel Pereira Coutinho, censuraram o juiz nos seus recursos por não ter esperado pela decisão da Relação de Lisboa ao recurso do MP de 10 de dezembro, o que “usurpa o poder jurisdicional da esfera da competência atribuída ao Tribunal da Relação de Lisboa”. Era este “tribunal superior que deveria sindicar e decidir pela manutenção ou não de decisões proferidas pelo tribunal de primeira instância”, argumentos que foram acolhidos pelos desembargadores Guilherme Castanheira e João Abrunhosa.

Ivo Rosa e a “Demonstração do Indemonstrável” de Fernando Pessoa

Ivo Rosa decidiu levantar o arresto da conta de Maria João Bastos Salgado a 26 de janeiro de 2022. De acordo com o despacho agora declarado juridicamente “inexistente”, o juiz de instrução criminal não viu “factos concretos” que indiciem que “o arguido Ricardo Salgado” agiu “em conluio com Maria João Bastos” para esconder 700 mil euros.

Ivo Rosa optou por não dar relevância ao facto de os 700 mil euros em causa advirem da venda de um imóvel da herança da mãe de Ricardo Salgado, sendo que imediatamente a seguir ao crédito desse montante na conta de Maria João Bastos Salgado foram dadas duas ordens de transferência (entretanto suspensas): de 240 mil euros para pagar contas do ex-líder do BES num escritório de advogados e de 350 mil euros para a filha do casal Salgado.

Pior: o MP e o assistente BES argumentaram nos seus recursos que a própria mulher de Ricardo Salgado tinha confessado ao juiz Ivo Rosa que o cheque de 700 mil euros só tinha sido depositado na sua conta do Deutsche Bank porque as contas do marido “estavam todas arrestadas“, e tal seria a “única maneira” de conseguir enviar dinheiro para a filha do casal, a qual havia custeado despesas dos seus pais.

Ivo Rosa tem 8 meses para concluir a fase de instrução do caso BES

Ou seja, Maria João Bastos afirmou no Tribunal Central de Instrução Criminal que a conta bancária em causa tinha sido aberta para contornar os diversos arrestos decretados ao património de Ricardo Salgado.

“Mais uma vez”, Ivo Rosa “distorce a realidade ou revela não ter ouvido bem o depoimento da testemunha”, “não deixando de ser sintomática a ocultação feita” pelo juiz “na apreciação da matéria de facto” e “do restante teor do depoimento da ‘testemunha'”, “quiçá para permitir, ainda nas palavras de Fernando Pessoa, ‘A Demonstração do Indemonstrável’”, afirmou o MP no seu recurso.

O “entendimento errado, enviesado e ligeiro” de Ivo Rosa sobre as garantias patrimoniais

Os desembargadores Guilherme Castanheira e João Abrunhosa acolheram igualmente a forte censura do MP sobre “um entendimento manifestamente errado, enviesado e ligeiro” de Ivo Rosa sobre os pressupostos das garantias patrimoniais sob a forma de arresto preventivo.

É que, de acordo com a Relação de Lisboa, o juiz Ivo Rosa não colocou em causa que o MP e o assistente tivessem direito a declarar a perda de vantagens (o MP) ou a pedir uma indemnização (o assistente), mas juntou-lhe um terceiro pressuposto que não existe na lei: que teria de existir um alegado conluio entre Ricardo Salgado e a sua mulher, o que não tinha sido alegado pelo MP.

Ora, a Relação de Lisboa concordou com os advogados Paulo Sá e Cunha e Miguel Pereira Coutinho: não foi alegado, nem tinha de o ser porque a lei não exige tal pressuposto.

E acolheu igualmente uma censura do assistente BES, que considerou como “inadmissível” que se “acabe por sustentar o levantamento de um arresto com base na suposta omissão de uma formalidade sem qualquer cabimento legal” no “maior e mais complexo processo colocado perante a justiça portuguesa”, com “105 assistentes constituídos” e “com enormes repercussões na esfera jurídica de tantos e tantos lesados”.