Uma artista e ativista, uma deputada local e um instrutor de ginásio/ex-boxeur – três casos de russos que se opõem à guerra na Ucrânia, que combateram a apatia (e o medo) na sociedade russa e que ainda hoje estão a pagar por isso, como relataram ao jornal espanhol El Mundo. A primeira tem problemas de saúde e pode continuar presa mais 10 anos, a segunda teve de fugir do país e o terceiro foi detido e multado por mostrar um cartaz anti-guerra e uma cópia do livro “Guerra e Paz” – foi denunciado por uma concidadã que passou por ele e decidiu chamar a polícia.
O caso da jornalista/produtora Marina Ovsyannikova, que mostrou um cartaz por trás da pivô em plena emissão noticiosa na Rússia, é o caso de insurgência mais conhecido mas estima-se que até ao momento mais de 8.000 cidadãos russos tenham sido detidos (alguns continuam na prisão) por se manifestarem contra a guerra que começou a 24 de fevereiro – um número que não inclui os que foram apenas multados ou que, sob ameaça, abandonaram o país.
Nina Belyayeva, que não se considera “inimiga do povo”
Um desses casos, que tiveram de sair da Rússia e continuam fora do país, é o de Nina Belyayeva, deputada municipal de Voronezh, uma cidade no sudoeste da Rússia. A deputada, ligada ao partido comunista local, decidiu usar um discurso numa sessão plenária para chamar “crime de guerra” à invasão que o Presidente Putin tinha acabado de iniciar e que classificou como “operação militar especial”.
“Sou contra a decisão que o Presidente tomou e aquilo que está a acontecer, hoje, no território do Estado soberano da Ucrânia, é um crime de guerra“, afirmou aos outros deputados, recordando ao El Mundo que foi um discurso que lhe saiu naturalmente, já que não tinha pensado falar sobre esse tema na sua intervenção, naquele dia, 22 de março. Já tinha, porém, escrito muito contra a guerra nas suas redes sociais, nas semanas anteriores.
Um dos outros deputados presentes nessa sessão contrariou Belyayeva, perguntando-lhe o que achava dos soldados russos que, no entendimento deste parlamentar, estavam na Ucrânia a “proteger as vidas dos russos no geral”. “Os seus dados estão incorretos”, ripostou a deputada: “Ninguém atacou o nosso país. E ninguém iria atacá-lo amanhã. Isso é aquilo que os propagandistas meteram na sua cabeça.”
Subitamente, instalou-se a confusão e gerou-se uma cena digna de um tribunal estalinista, em que Belyayeva foi confrontada com o que tinha dito, alegadamente contrário à ética parlamentar, e foi retratada como uma “inimiga do povo”. “Fiquei assustada, tentei explicar o que dizia – não me sinto uma inimiga do povo, pelo contrário, os inimigos do povo são aqueles que apoiam a guerra e enviam os nossos soldados para morrer [na Ucrânia] e matar”, recorda, ao telefone com o jornal espanhol.
Por precaução, a deputada saiu do país poucos dias depois e, hoje, o seu rosto está na lista dos cidadãos procurados, que é publicada pelo Ministério do Interior russo.
Sasha Skochilenko, a primeira a ser detida ao abrigo da lei de Putin
Um dos crimes de que a deputada está acusada é o mesmo que pende sobre outra mulher, Sasha Skochilenko, artista e ativista pelos direitos sociais que está presa há várias semanas – foi, aliás, a primeira pessoa detida ao abrigo da lei que Putin passou em inícios de março. Essa lei prevê penas de prisão entre 10 e 15 anos para quem difunda “informação deliberadamente falsa” sobre a operação militar russa.
A prisão (preventiva) de Sasha foi ordenada, a 13 de abril, por um tribunal de São Petersburgo que validou as provas de que a artista tinha visitado várias lojas e substituído as etiquetas de preço de vários produtos por pequenos autocolantes com mensagens anti-guerra.
“Eram umas etiquetas que se podiam comprar na Internet. Muita gente as comprou e andou a espalhá-las por vários locais – Sasha foi apenas mais uma que participou nesse movimento”, conta ao El Mundo não a própria mas, sim, a namorada, que se chama Sofía Subbotina.
A namorada tem feito tudo para tirar a artista da cadeia, já que esta, além de sofrer de problemas psiquiátricos, também é celíaca, ou seja, precisa de alimentar-se com uma dieta especial que demorou um mês a ser-lhe atribuída – e, mesmo assim, não todos os dias, segundo relata Sofía Subbotina.
A prisão preventiva poderá durar até 1 de julho, mas a artista enfrenta o risco de ser condenada a uma pena de prisão mínima de cinco anos – que pode, no entanto, chegar aos 10 anos. “Gritar ‘não à guerra’ hoje é visto na Rússia como uma posição extremista“, diz Sofía Subbotina, que acredita que o caso de Sasha está a ser utilizado pelas autoridades russas como exemplo, para dissuadir outros de manifestarem publicamente a sua oposição à guerra.
“O mais horrível é que esta guerra é contra os nossos irmãos, os nosso vizinhos”, lamenta Sofía Subbotina, acrescentando: “Não sei como a Rússia alguma vez vai limpar este sangue das suas mãos, é uma vergonha.”
Konstantin Goldman, o ex-boxeur denunciado por uma concidadã
Detido pelo mesmo crime mas, entretanto, libertado, foi Konstantin Goldman, um ex-boxeur que trabalha como monitor num ginásio em Moscovo. Foi levado para a esquadra pela polícia, conta o próprio ao El Mundo, por ter decidido colocar-se de pé no Jardim de Alexandre, perto da sede do Kremlin, com uma cópia da obra-maior de Lev Tolstoy – “Guerra e Paz” – e um pequeno cartaz anti-guerra.
Estava perto de um monumento que existe naquele jardim, em que se presta homenagem ao heroísmo histórico da cidade de Kiev. Não gritou quaisquer palavras de ordem, esteve ali só 10 minutos para “mostrar a solidariedade com a Ucrânia”. Esses 10 minutos chegaram para que uma mulher, também civil, tenha passado por ele e decidido denunciá-lo à polícia, que imediatamente foi ao local.
“Vejo de tudo. Mais do que medo, vejo indiferença, ao mesmo tempo que sobem os preços de tudo. Mas as pessoas não têm pensamento crítico: continuam apenas a querer comer e pagar o crédito da casa“, diz Konstantin ao El Mundo, falando sobre as complexidades da opinião pública russa em relação à guerra.
“Há pessoas que apoiam o regime mas saem do país porque sentem que deixaram de ter oportunidades [profissionais] aqui – eu teria vergonha de pensar assim”, diz Konstantin, ainda assim confiante de que um dia os seus compatriotas irão “olhar para o que se passa na Ucrânia com outros olhos, quando tiverem mais informação sobre o que se passa”.
Quanto àqueles que já hoje mostram a sua oposição, mesmo os que não fazem parte das estatísticas, também estão a sofrer represálias. “Há aqui muitas pessoas que querem desafiar o regime, mas muitas têm medo – são a maioria – porque sabem que basta fazer uma coisa como aquilo que eu fiz e o que lhes acontece é que recebem um telefonema do patrão e são despedidos do emprego.”