Francisco J. Marques e Júlio Magalhães, então responsáveis pelo Porto Canal, assim como o comentador Diogo Faria vão mesmo ser julgados por terem divulgado o conteúdo de vários e-mails do Benfica num programa televisivo, decidiu o juiz Carlos Alexandre num despacho de pronúncia de 242 páginas assinado esta segunda-feira e a que o Observador teve acesso.
Carlos Alexandre subscreveu assim a posição dos assistentes e do Ministério Público (MP) para as acusações pública e particular, levando assim a julgamento o diretor de comunicação do FC Porto, Francisco J. Marques, e o antigo diretor do Porto Canal, Júlio Magalhães, pelos crimes de violação de correspondência ou de telecomunicações, acesso indevido e ofensa a pessoa coletiva, e Diogo Faria, comentador no programa ‘Universo Porto – da Bancada’, por um crime de violação de correspondência ou de telecomunicações e outro de acesso indevido. Todos eles divulgaram, ao longo de vários programas televisivos, informação de e-mails que terão sido hackeados ao Benfica.
Os arguidos devassaram essa informação ilegalmente obtida, filtraram-na, reportaram-na, reorganizaram-na e montaram uma telenovela semanal sob capa de investigação jornalística, para destruírem a credibilidade do Sport Lisboa e Benfica”, lê-se no despacho de pronúncia.
Emails do Benfica. Francisco J. Marques acusado de sete crimes, Júlio Magalhães responde por três
A instrução do processo, aberta em abril de 2020, decorreu em Lisboa depois de um pedido feito pela própria SAD do Benfica. Carlos Alexandre envia agora o processo para o Juízo Central Criminal de Lisboa, onde foi dada notícia do crime inicialmente.
De que são acusados o arguidos?
Francisco J. Marques foi acusado pelo Ministério Público, a 24 de fevereiro de 2020, de três crimes de violação de correspondência ou de telecomunicações, três crimes de violação de correspondência ou de telecomunicações agravadas, em concurso aparente com três crimes de devassa da vida privada e um crime de acesso indevido. Responderá ainda por cinco crimes de ofensa a pessoa coletiva agravados e um crime de ofensa à pessoa coletiva agravado na sequência de um acusação particular.
Diogo Faria responderá por um crime de violação de correspondência ou de telecomunicações e um crime de acesso indevido. Por acusação particular responderá por um crime de ofensa à pessoa coletiva agravado.
Já Júlio Magalhães viu confirmada a acusação pública de três crimes de violação de correspondência ou de telecomunicações agravados em concurso aparente com três crimes de devassa da vida privada e a acusação particular de cinco crimes de ofensa a pessoa coletiva agravados.
Os crimes terão ocorrido ao longo dos vários meses em que alimentaram o programa televisivo dando conta do conteúdos dos e-mails que terão chegado a Francisco J. Marques de forma anónima, primeiro com um aviso por SMS e depois por e-mail. Foi um acervo de 20 gigabyte de informação que o diretor de informação acabou por fazer chegar à PJ meses depois por três vezes. Informação complementar foi mais tarde publicada no blogue Mercado de Benfica que terá sido criado por Rui Pinto, o também criador do Football Leaks, que está a ser julgado por um total de 90 crimes: 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo, visando entidades como o Sporting, a Doyen, a sociedade de advogados PLMJ, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por extorsão, na forma tentada. Este último crime diz respeito à Doyen e foi o que levou também à pronúncia do advogado Aníbal Pinto.
Como se justificam os arguidos perante o juiz de instrução?
Francisco Marques justificou em tribunal — nesta fase em que um juiz de instrução decide se leva ou não o caso a julgamento — que as informações por si divulgadas lhe chegaram de forma “inesperada” e que, pelo seu interesse público, decidiu fazer a sua divulgação no programa “Universo Porto — Da Bancada”. Em causa estariam alegados crimes praticado por um dos maiores clubes de futebol português e a matéria era de tal relevante interesse público, como o diretor de informação alegou, que ele mesmo acabou a ser entrevistado sobre o tema para vários órgãos de informação nacional e internacional, como o The New York Times e a New Yorker. Diz que atuou “no exercício da liberdade de expressão e informação que lhe assiste”.
“É insofismável que a denúncia pública em órgão de comunicação social de quaisquer formas de corrupção no futebol constitui um assunto de interesse geral para toda a comunidade, que extravasa até a população dos adeptos de clubes de futebol, havendo lugar a uma proteção reforçada da liberdade de expressão. Ademais, o dispêndio de quantias avultadas de um clube de futebol em práticas de bruxaria é igualmente uma questão de interesse público, pois a SL Benfica SAD é uma sociedade comercial cotada em bolsa, o que impõe uma necessidade imperiosa de submissão ao escrutínio público”, lê-se no requerimento de abertura de instrução do arguido, que consta na pronúncia a que o Observador teve acesso.
Por outro lado, Francisco Marques justifica também que selecionou a informação, tendo deixado de fora assuntos respeitantes à vida íntima, familiar e sexual das pessoas neles referidas, dando como exemplo dados pessoais de árbitros, das suas mulheres e das suas amantes.
Os arguidos alegaram também que alguns dos assistentes, como foi o caso da SAD do Benfica, não tinham legitimidade para apresentar queixa contra eles, mas sim cada titular do e-mail.
O que concluiu o juiz?
Para o juiz Carlos Alexandre, ficou claro na instrução que os arguido “preferiam que os papéis estivessem invertidos e fossem eles os assistentes”, mas resume o caso em três pontos: os arguidos obtiveram informação que acreditavam, porque lhes foi dito, ter sido obtida através de crimes contra as assistentes; os arguidos devassaram essa informação ilegalmente obtida, filtraram-na, reportaram-na, reorganizaram-na e montaram uma telenovela semanal sob capa de investigação jornalística, para destruírem a credibilidade do Sport Lisboa e Benfica, lê-se no despacho de pronúncia. E, para o magistrado, fizeram-no apenas com duas motivações: pela rivalidade clubística e pelas audiências.
Carlos Alexandre considerou também a tese apresentada pelos arguidos sobre falta de legitimidade dos queixosos como desadequada e “insuficiente”, isto porque uma pessoa coletiva tem um interesse relevante na proteção do correio eletrónico e porque os email embora de pessoas singulares estão inseridos num domínio profissional pertencente aos assistentes.
“Subescrevemos o entendimento de que o ataque informático dirigido ao sistema informático do Benfica SAD a partir da qual se divulga informação de colaboradores dessa entidade, tem interesse exatamente porque essa informação é vital ou relevante para a própria Benfica SAD!”. Foi violada “a privacidade das assistentes além da privacidade dos intervenientes na correspondência eletrónica”, considerou o juiz.
Outro dos argumentos que Carlos Alexandre não acolheu foi de que o interesse desta informação se relacionava com o facto de estarem em causa pessoas conhecidas. “O que está em causa é a devassa da tomada de conhecimento e divulgação de comunicações entre diversas pessoas singulares, maior parte delas desconhecidas fora daquele núcleo restrito de pessoas que acompanham o fenómeno futebolístico” “com o intuito de devassar e lesar os direitos das assistentes”, acusou o magistrado, que aliás lembrou que Francico J. Marques trabalha para a comunicação do FC Porto e não é jornalista.
“Os diretores de comunicação, como é o caso do arguido, dão a cara por um clube e expõe-se pelo mesmo”, escreve. “Devem obediência ao clube, valores contrários aos de uma função de jornalista”, lembra.. Neste caso, os arguidos “prosseguem meramente os interesses concorrenciais do Grupo FCP, não se pautando pelos critérios e objetividade e independência que caracterizam a função jornalística, mas pelo seu oposto”. E por isso mesmo, concluiu, a triagem do material que fizeram foi apenas relacionada com o Benfica.
Ao Observador, os advogados Rui Patrício, Saragoça da Matta e João Medeiros que representam a SAD do Benfica optaram por uma resposta conjunta. “É uma decisão que julgamos acertada e que vê a realidade para lá da encenação tentada pelos arguidos de um pretenso interesse público e de uma falsa boa fé, e é uma decisão importante por várias razões, entre elas porque reforça a ideia de que na rivalidade clubística não pode valer tudo, incluindo difamar e caluniar, e, também, selecionar, misturar, manipular, descontextualizar e truncar documentos, os quais aliás já tinham antes sido obtidos e depois traficados criminosamente”.