A Comunidade Israelita do Porto, cujo rabino foi detido pela Polícia Judiciária, enviou um parecer arrasador para a Assembleia da República na sequência das propostas de alteração à lei da nacionalidade, que querem limitar a atribuição da nacionalidade portuguesa a descendentes de judeus sefarditas. A Comunidade Israelita do Porto fala em “holocausto contra famílias”, “campanhas de difamação por agentes do Estado” e “recolha de denúncias anónimas da ralé da sociedade” e que o Estado protagonizou “ações antissemitas e terroristas”.

Detido rabino da Comunidade Israelita do Porto, um dos responsáveis pela atribuição de cidadania portuguesa a Abramovich

São três páginas enviadas à Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias que arrasam o Estado português por parte da comunidade judaica do Porto. Desde a detenção do rabino da comunidade, Daniel Litvak, que a comunidade do Porto suspendeu a emissão de vistos de nacionalidade e essa é a posição que mantém agora: “a Comunidade perdeu qualquer interesse em cooperar com o Estado e, por ordem da Assembleia Geral, inaugurou uma nova sala no Museu Judaico do Porto”, sala essa em que “apresenta a cronologia do antissemitismo em Portugal entre 2015-2022” e onde “em breve haverá também uma vitrine bem iluminada contendo todas as denúncias que levaram a este processo e fotografias de todas as personagens que fizeram, divulgaram e aproveitaram tais denúncias com propósitos malignos”.

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Comunidade Judaica do Porto suspende certificação de judeus sefarditas pós detenção do rabino

Estas personagens são, para a Comunidade Israelita do Porto, “agentes de Estado que tudo organizaram com aqueles jornalistas, influencers, caluniadores” e onde incluem ainda magistrados e polícias que dizem ter “utilizaram em seu proveito denúncias que sabiam ser caluniosas e que sabiam ter sido perpetradas por “anónimos” cuja identidade eles conheciam”, apontando até para alguém que foi condenado pelo Tribunal Criminal do Porto por ter ofendido os “não-judeus”.

Num documento em que começa até por apresentar os critérios da comunidade para aceitar os pedidos dos descendentes de judeus sefarditas, em que citam um artigo de opinião publicado no Observador, a Comunidade Israelita do Porto adianta que sete anos depois da entrada em vigor da lei apenas 5% — 50 mil pessoas –, dos descendentes sefarditas obtiveram a nacionalidade portuguesa, entre os 10% que a pediram — entre um universo que dizem ser superior a 1 milhão de pessoas.

Critérios de certificação de sefardismo da Comunidade Judaica do Porto durante sete anos

O parecer assinado por Gabriel Senderowickz, atual presidente da Comunidade Israelita de Portugal e da comunidade do Porto, diz que “em 2020 foi desencadeada uma campanha de difamação” contra a lei da nacionalidade “por parte de agentes do Estado”, e que este grupo de agentes, a partir do final de 2021, “voltou à carga, recolheu denúncias anónimas da ralé da sociedade” e que “reduziu a lei aos emolumentos cobrados pela Comunidade Israelita do Porto” e que “envolveu os responsáveis em suspeitas, criando um clima de terror e de notícias desfavoráveis através de meia dúzia de jornalistas previamente escolhidos e de influencers com lastro antissemita”. A missiva vai mais longe ao dizer que ao longo das semanas de “difamação” se assistiu “ao holocausto de famílias inteiras expostas nos jornais e arrastadas pelos cabelos para as televisões, com base em denúncias anónimas”, criticando sobretudo a forma como a policia atuou numa busca domiciliária à neta de um dos fundadores da comunidade e atual vice-presidente.

Entre as movimentações anónimas, a comunidade judaica acusa “os agentes do Estado” de terem “disseminado pelas redações que o membro da direção responsável pelos assuntos jurídicos participou na construção da legislação da nacionalidade” com o objetivo de “traficar passaportes e roubar os emolumentos”. O nome em causa é o de Francisco Almeida Garret, sobrinho de Maria de Belém, uma das figuras que Constança Urbano de Sousa disse ao jornal Público ter pressionado publicamente a aprovação da lei que permite estas atribuições de nacionalidade.

Comunidade justifica casos mediáticos: Abramovich e Drahi

No parecer enviado ao Parlamento, a comunidade judaica defende a atribuição de nacionalidade a Roman Abramovich, que se tornou mais mediático tendo em conta a guerra com a Ucrânia, e com Patrick Drahi, o chairman da Altice. No caso de Abramovich, diz a comunidade portuense que o Rabinato Russo certificou essa descendência, enquanto no caso de Patrick Drahi, a comunidade alega que a descendência sefardita foi também certificada pela Comunidade Judaica de Lisboa.

Na defesa do rabino-chefe do Porto, o parecer diz que Daniel Litvak chegou a recusar certificar um candidato a líder da comunidade de Israel e a um ministro do Brasil, “entre outras relevantes personalidades do mundo atual”. Para a Comunidade Judaica do Porto, Litvak é “a pessoa mais preparada em Portugal para emitir certificados de sefardismo”.

Nessa defesa de Daniel Litvak, a comunidade diz que “o Tribunal restituiu o Chefe Rabino à liberdade e não o impediu de continuar a emitir certificados de sefardismo”, ainda que a própria comunidade tenha decidido suspender a atividade “pois recusa-se a cooperar com um Estado que enceta uma ação antissemita e terrorista”.

Ordem dos Advogados e parecer aponta para lei ad-hominem 

Entre os restantes pareceres recebidos, a Ordem dos Advogados critica uma alteração à lei feita a pensar num caso mediático. O Conselho Geral da Ordem dos Advogados diz que existe uma “fulanização dos alegados abusos” e que a boa produção de leis “aconselha a que não se legisle sobre casos concretos, ainda para mais quando estes acabaram de acontecer”. Os alertas da Ordem dos Advogados vão mais longe ao dizer que “se toda a legislação que é violada fosse revogada, muito provavelmente não haveria legislação para aplicar”, sugerindo que se o caminho é “melhorar a regulamentação, adaptando-a a possíveis falhas que não estivessem previstas aquando da elaboração” da lei e que isso foi até feito em março deste ano com a alteração ao Regulamento da Nacionalidade Portuguesa e que esses “critérios mais apertados” serão suficientes para considerar “o problema resolvido através da alteração da regulamentação”.

Uma posição intermédia tem a deputada do PS, Alexandra Leitão, que foi a relatora do parecer sobre estas oito propostas de alteração à lei da nacionalidade. A deputada socialista também entende que o modo de acabar com os abusos “não passa, necessariamente, pela revogação dos regimes jurídicos – nem em geral, nem no caso em apreço”. Ou seja, acabar com a lei não é a solução para os abusos. Ainda assim, Alexandra Leitão admite que “lei possa comportar alterações no sentido de “blindar” mais o regime face a eventuais abusos”, através da “fixação de um prazo ou da exigência de uma qualquer outra ligação efetiva”, ainda que isso possa acontecer mudando a lei ou “através da sua regulamentação“.

Também convidado a emitir um parecer, a Procuradoria Geral da República disse apenas que os projetos “não parecerem” ter “incorreções do ponto de vista jurídico”.

Nas propostas de alteração à lei da nacionalidade, focadas na questão dos judeus sefarditas, o PCP é um dos mais radicais, ao revogar esta possibilidade de pedirem a nacionalidade portuguesa, enquanto o PS não quer voltar para já ao assunto. O Livre propõe critérios mais apertados para a concessão dessa nacionalidade.

As propostas dos restantes partido — PS, PSD, IL, PAN –, dizem sobretudo respeito à questão da naturalização após os 18 anos. À exceção do PS todos os partidos propõem o fim do critério da idade para ter acesso à nacionalidade, mas o PS escolhe um caminho mais cauteloso, apoiando-se, por exemplo, numa decisão judicial.