João Lourenço pode querer promover um funeral de Estado a José Eduardo dos Santos — afinal, era uma figura intimamente ligada ao processo de independência, chegou a chefe de Estado, pacificou o país quando Angola vivia uma guerra civil e esteve quase quatro décadas à frente dos destinos do país. O Presidente angolano já deu, de resto, o primeiro passo para que a última homenagem a ‘Zédu’ aconteça em Angola, ao criar a comissão que deve organizar a cerimónia. O problema pode estar na família e nas implicações de um funeral em Luanda. Sobretudo, para uma das filhas, Isabel dos Santos.

Morreu José Eduardo dos Santos, o senhor absoluto de Angola durante quase 40 anos

Foi da Presidência de Angola que saiu a notícia da morte de José Eduardo dos Santos, através de um comunicado oficial divulgado ao final da manhã desta sexta-feira. “O Executivo da República de Angola leva ao conhecimento da opinião pública nacional e internacional, com um sentimento de grande dor e consternação, o falecimento de Sua Excelência o ex-Presidente da República, Engenheiro José Eduardo dos Santos, ocorrido hoje às 11h10, hora de Espanha certificada pelo boletim médico da clínica, em Barcelona, após prolongada doença”, referia o documento.

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Minutos mais tarde, Luanda fazia saber que o Presidente João Lourenço tinha decretado luto nacional de cinco dias, com início à meia-noite de sábado, em homenagem à “figura”, à “obra”, aos “feitos” e ao “legado ao serviço da nação angolana”. E, por fim, a Presidência da República de Angola tornava público um despacho assinado pela mão de João Lourenço que, na prática, dá o primeiro passo para a realização de um funeral de Estado em Angola. “Havendo necessidade de se organizar a cerimónia fúnebre na sequência do passamento físico do antigo Presidente da República de Angola, José Eduardo dos Santos, o Presidente da República, João Manuel Gonçalves Lourenço [cria] a Comissão para organização da cerimónia fúnebre”.

Dessa comissão fazem parte 11 ministros do governo de Angola, além da governadora da província de Luanda. A composição é a seguinte: ministra de Estado para a Área Social, ministro de Estado e Chefe da Casa Civil, ministro de Estado e Chefe da Casa Militar, ministro da Defesa Nacional e Veteranos da Pátria, ministro do Interior, ministro da Administração do Território, ministro das Relações Exteriores, ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, ministra das Finanças, ministra da Saúde, ministro das Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação Social, governadora da Província de Luanda.

“Responsabilidades constitucionais” apontam para funeral de Estado

Até ao início da tarde, não havia ainda informações públicas sobre o funeral do antigo Presidente de Angola. Mas entre as responsabilidades constitucionais do país para com o antigo Presidente enquadra-se, precisamente, o funeral, como explicava esta semana ao Observador um advogado angolano. “Claro que não está escrito na Constituição, mas subentende-se e faz parte da tradição. É impensável que um ex-Presidente com um mandato de 38 anos não tenha um funeral de Estado.”

José Eduardo dos Santos. Governo angolano diz que mantém todas as suas “responsabilidades constitucionais até ao fim”

Ora aqui pode estar uma dor de cabeça para João Lourenço. “É do total interesse político do atual Presidente fazer um funeral de Estado, capitalizando o momento para benefício do MPLA a pouco tempo de eleições”, analisa uma figura de relevo ligada às duas presidências. Apesar de todas as acusações de nepotismo, corrupção e esbanjamento de fundos públicos, José Eduardo dos Santos (JES) é acarinhado por muitos angolanos. Veem-no como o Arquiteto da Paz, que acabou com uma guerra civil de quase três décadas, como o homem que uniu o país (com exceção de Cabinda não há muitos ímpetos separatistas) e criou as bases do Estado.

Mas, tendo JES morrido em Espanha, numa clínica de Barcelona onde estava internado nos cuidados intensivos desde o final de junho, não é líquido que seja sepultado em Luanda. As filhas Tchizé e Isabel poderão não o querer. E a última tem particulares razões para isso. Com os processos judiciais que pendem sobre aquela que já foi considerada a mulher mais rica de África, Isabel dos Santos pode ser detida assim que entrar em território angolano.

Aliás, segundo informação avançada recentemente pelo Jornal de Negócios, a justiça angolana terá tentado deter Isabel dos Santos nos Países Baixos, este mês. A primogénita de Zédu (como é conhecido em Angola o ex-chefe de Estado) terá acabado por frustrar as intenções da Procuradoria Geral de Angola, que terá pedido a sua detenção e deportação. Ainda segundo o mesmo jornal, os seus advogados terão conseguido que as autoridades neerlandesas a libertassem depois de ter sido ouvida.

PGR nega ter pedido a detenção de Isabel dos Santos. Tchizé tenta evitar trasladação

Versão diferente tem a Procuradoria Geral da República de Angola. Contactada pelo Observador, a PGR angolana explica que, depois de ter conhecimento de que Isabel dos Santos estava na Holanda, solicitou, mediante carta rogatória, que fosse notificada na sua qualidade de arguida e fosse interrogada. “Em nenhum momento se requereu detenção/prisão da arguida.” A mesma fonte da PGR recorda o que foi noticiado na altura: “Abordada pelas autoridades competentes, não aceitou notificação nem audição, tendo abandonado o país.”

Tendo em conta que o PGR angolano já admitiu a emissão de um mandado de captura internacional e que, na recente entrevista à RTP, João Lourenço disse separar as questões de amizade das judiciais, não admira pois que Isabel dos Santos não tenha qualquer vontade de aterrar em Angola. Pode assim opor-se ao funeral do pai em Luanda. A menos que haja alguma vontade expressa do ex-Presidente nesse sentido. Ao longo desta sexta-feira, ficou mais claro que Angola pretende, de facto, realizar uma homenagem ao seu antigo Presidente — embora corram rumores em Angola de que JES terá deixado um documento sobre o assunto e, segundo Tchizé dos Santos, o desejo seria o de que o seu corpo não fosse enviado para Angola.

As reações que a filha de José Eduardo dos Santos foi tornando públicas através das redes sociais não deixavam dúvidas sobre a tensão entre elementos do clã dos Santos e o poder de Luanda. “Apagar a luz do outro não vai fazer com que a sua brilhe mais”, escreveu Tchizé dos Santos numa imagem publicada no Instagram, a propósito da morte do pai. E, a acompanhá-la, ainda um recado: “Digam isso ao João Lourenço, Ana Paula dos Santos, João Afonso e ao MPLA.”

Mas não ficou por aí. Apesar de Isabel dos Santos ser, à partida, o elemento mais interessado em manter as cerimónias distantes de Luanda, foi Tchizé quem tomou a dianteira da ação. Citada pela CNN, a equipa legal que representa a filha de ‘Zédu’ anunciou a intenção de que fosse realizada uma autópsia ao pai antes mesmo de o corpo ser trasladado para Luanda — uma medida que surge na sequência das suspeitas de que o declínio do estado de saúde do antigo Presidente de Angola resulta de uma tentativa de envenenamento, razão pela qual Tchizé já tinha apresentado queixa junto das autoridades espanholas por, entre outras, suspeitas de homicídio de José Eduardo dos Santos. Agora, de acordo com o jornal espanhol La Vanguardia, a filha de Eduardo dos Santos entregou uma providência cautelar para, pelo menos, adiar a entrega do corpo às autoridades angolanas.

A advogada que representa Tchizé dos Santos falou com a agência Lusa e afirmou que o antigo Presidente angolano não queria ser enterrado em Angola para evitar um aproveitamento político da cerimónia e porque os filhos não podem entrar no país. No entanto, não conheço nenhum documento onde esteja descrita essa vontande pela mão de José Eduardo dos Santos.

“Tchizé e os irmãos querem que se respeite a vontade do pai, que é não ser enterrado em Angola, mas sim em Espanha, porque não quer que o atual Presidente da República utilize o seu enterro com fins políticos”, disse Carmen Varela. Além disso, um enterro em Angola impossibilitaria o último adeus de vários familiares próximos, já que alguns dos filhos “não podem entrar em Angola e nem sequer têm passaporte angolano”.