O maior elogio que podemos fazer ao documentário “Montado, o Bosque do Lince Ibérico”, de JoaquínGutiérrez Acha, é que nos faz recordar a célebre e notável série “O Homem e a Terra”, que o seu malogrado compatriota e naturalista Félix Rodríguez de la Fuente dedicou à fauna da Península Ibérica nos anos 70 e passou com enorme sucesso na RTP em 1975. Este novo filme do autor de “Guadalquivir” (2013) e “Cantábrico” (2017) é a mais cara co-produçãoluso-espanhola deste género (custou 4 milhões de euros) e dá-nos a conhecer em e detalhe a região do montado ibérico, partilhada por Portugal e Espanha. Foi criada pelo homem há muitos séculos para se defender dos inimigos (o nome do montado em castelhano é, precisamente, “dehesa”), pastorícia e abastecimento de madeira (do sobreiro, em especial).

O montado ibérico abriga um riquíssimo ecossistema, de uma biodiversidade única na Europa e exclusiva dos dois países que a partilham. Inclui os predadores que ocupam o topo da cadeia alimentar, o lince ibérico (que até há pouco tempo esteve em risco de extinção, mas cujos números recuperaram), e a águia-imperial-ibérica, até aos mais pequenos e discretos insetos, passando pelo touro selvagem, a raposa, o abutre, o veado, a cobra, a lontra ou o essencial coelho, entre muitos outros que ali vivem no ar, na terra e na água, captados pelo realizador e a sua equipa com câmaras de alta tecnologia nas mais variadas e espectaculares situações, da caça à reprodução. Sem esquecer os homens que os enquadram e com eles convivem, e lá fazem vida da criação de ovelhas e da exploração da madeira, desde tempos longínquos.  

[Veja o “trailer” português de “Montado, o Bosque do Lince Ibérico”:]

Joaquín Gutiérrez Acha falou ao ‘Observador’ sobre a rodagem do filme (narrado por Joana Seixas), as características especiais do montado ibérico, a espantosa diversidade da sua fauna e flora e os perigos que o ameaçam: o cansaço dos pastos, a sobreexploração da madeira, a espécie de escaravelhos que vive anos dentro das árvores e as destrói por dentro, ao fazer delas o seu alimento, e as alterações climáticas.

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Como surgiu este documentário? Faz parte da trilogia sobre a fauna ibérica e os seus espaços naturais que tem vindo a rodar, ou é um filme separado dela?
Sim, faz. Nós elaborámos um plano sobre uma trilogia de documentários que procura mostrar os diversos ecossistemas que temos na Península Ibérica: a alta montanha, os cursos fluviais e agora o montado, que é um ecossistema exclusivo de Portugal e Espanha. Isso não quer dizer que não continuemos a trabalhar sobre a fauna ibérica e os espaços naturais da Península. Mas “Montado” fecha esta trilogia.

Quanto tempo durou a rodagem e quais as dificuldades que encontraram?
A rodagem durou quase dois anos, para conseguirmos as imagens que aparecem no filme. E filmámos muito mais do que as que selecionámos. Este tempo de filmagem explica-se porque precisávamos de captar a parte mais escondida do montado, deste ecossistema que parece estar muito próximo de nós. Mas quando tiramos o homem, começa a aparecer toda esta fauna, todos estes animais selvagens que estão escondidos, e leva muito tempo a filmá-los. A presença do homem no montado obriga os animais a ficarem nos seus espaços. E muitos deles são animais noturnos e passam o tempo a evitá-lo. Muitas vezes tivemos que esperar bastante tempo até eles aparecerem e se habituarem à nossa presença nos diversos locais onde estávamos a filmar. Senão, seria impossível termos conseguido essas imagens. Aí residiu a nossa principal dificuldade, que justifica estes 24 meses de trabalho no local.

O ecossistema do montado é de uma variedade e de uma riqueza extraordinárias, sobretudo no que respeita aos animais selvagens. Acha que este filme vai conseguir dar a conhecer melhor esta região tão pouco conhecida e divulgada quer em Portugal, quer em Espanha, que a partilham?
Eu tenho a certeza que sim, apesar de ser, como disse um ecossistema muito pouco conhecido quer de espanhóis, quer de portugueses. Quando o filme passou em Espanha nos cinemas, muita gente ficou surpreendida com a quantidade e a variedade de animais selvagens que existe no montado. E num espaço que é muito aberto, não é uma floresta cerrada. Há que o defender e conservar, e este filme pode servir como uma primeira pedra para que este lugar seja considerado de importância vital. Dizem que o montado é o ecossistema de maior biodiversidade da Europa. Penso que o filme dá bem ideia disso.

[Veja o “trailer” espanhol alargado de “Montado, o Bosque do Lince Ibérico]

O lince (que está no título do filme) e a águia-imperial-ibérica são, por assim dizer, as “estrelas” de “Montado”. Mas o documentário mostra um amplo panorama da fauna da região até aos mais humildes insetos, e sublinha a importância da existência de todas estas criaturas para o equilíbrio daquele ecossistema. Ficaram animais por mostrar, ou conseguiu incluir pelo menos todos os mais importantes?
Não, não consegui. Isso seria impossível, porque a diversidade da fauna do montado é infinita. O lince ibérico e a águia-imperial-ibérica são símbolos desse ecossistema, porque não existem em mais nenhum lugar do mundo, e teriam que ser os protagonistas. Mas eles compartilham aquele espaço com outros animais que também são relevantes, como é o caso do coelho, que é a base do mesmo e o seu animal mais importante, no sentido de ser ele que sustenta uma grande quantidade de predadores. E além dos outros animais que são mostrados no filme, há ainda os muitos pequenos insetos, caso da aranha caranguejeira, e que formam parte de um universo riquíssimo e que têm coisas para contar. Por exemplo, a dita aranha muda de cor para se confundir com as plantas e poder caçar; ou ainda aqueles escaravelhos que passam quatro ou cinco anos no interior das árvores a devorar a madeira, para depois saírem e viverem apenas um mês, e nada mais. E que fazem também parte do desastre que se está a abater sobre as árvores da zona. É como tentar contar uma história com o maior número de personagens possível, sem esquecer os homens e os animais que ele cria ali, como as ovelhas e o porco.

Conseguiram captar imagens espectaculares, como a do pequeno martim-pescador a mergulhar no rio como uma seta para pescar, ou da luta entre os linces-fêmea e um filhote. Foi decerto um trabalho que envolveu muita paciência, e algum acaso, também?
Foi de tudo um pouco. No caso do martim-pescador, começámos por localizar o seu território numa determinada zona do rio, um território que pertencia aliás a uma família destas aves. E depois, houve que esperar e esperar, para podermos conhecer as suas rotinas e saber onde pescava. Já a luta entre os linces-fêmea e o filhote de uma destas foi fruto do acaso, porque não fomos filmá-la expressamente, aconteceu na nossa presença, não estávamos de modo algum à espera que se desse. Apenas estávamos no sítio adequado no momento exato. São presentes que a natureza nos dá quando estamos a trabalhar.

Ainda no caso do martim-pescador, usaram câmaras especiais para as sequências da pesca em mergulho?
Sim, usámos câmaras ultra-rápidas, de ultra-velocidade, um equipamento de filmagem que capta 1600 imagens por segundo. É a única maneira de dar a ver como esta ave faz para pescar. Se tivéssemos filmado à velocidade real com câmaras convencionais, não conseguíamos ver nada. Este equipamento de alta tecnologia permite decompor o movimento e ver em pormenor como caça este animal tão preciso. Aliás, os homens que conceberam os comboios de alta velocidade inspiraram-se no aerodinamismo do martim-pescador.

[Veja imagens nocturnas do documentário]

O filme deixa claro que o montado é um ecossistema especial, equilibrado mas também delicadíssimo, e refere algumas das ameaças que o afetam: a seca, os escaravelhos que comem as árvores por dentro, de que já falou, e as alterações climáticas. O que podemos fazer para as contrariar, sem causarmos danos na paisagem e na fauna, e afetarmos a forma exemplar como estas se articulam com a presença e a atividade humana?
Há que recordar, primeiro que tudo, que o homem é o artífice do montado. É uma zona intervencionada pelo homem e os animais foram-se adaptando a esse novo ecossistema. Mas o homem é que a fabricou, e desde tempos longínquos, desde a Idade Média ou até mesmo antes, o homem criou lá os pastos, para ter o seu gado e colher madeira. Inclusivamente, em castelhano, montado diz-se “dehesa”, defesa, e há teorias segundo as quais esse bosque foi criado para deter os inimigos. É um ecossistema que foi sendo moldado pelo homem e a fauna foi conseguindo achar o seu lugar dentro dele. A partir daí, conviveram juntos, sempre houve como que um contrato entre o bosque e o homem, entre a natureza e nós. E com o tempo, este contrato tem vindo a desvirtuar-se, porque o homem sobreexplorou os pastos com o gado, e compactou o solo. Dantes, havia a transumância e o gado ia para outras zonas, permitindo aos pastos recuperarem-se. Ora isto já não sucede. E há outros inconvenientes, como esse escaravelho que devora a madeira por dentro, por exemplo. Por outro lado, temos ainda as alterações climáticas, que estão também a afetar aquele ecossistema. O que podemos fazer? Não podemos mudar o clima, isso são políticas que têm que ser levadas a cabo a nível global. O que podemos fazer é substituir o que está doente, voltar a plantar árvores, por exemplo. Há já entidades públicas e empresas privadas que se estão a ocupar disso. A curto e médio prazo, este é um bocado da solução.

Considerando tudo o que viu, filmou e mostra em “Montado, o Bosque do Lince Ibérico”, está otimista ou pessimista em relação ao futuro do montado ibérico?
A verdade é que não podemos estar muito otimistas. Mas uma coisa é óbvia: filmes como este, em que Portugal teve muita relevância e em que houve uma colaboração muito importante e muito bonita entre portugueses e espanhóis, são pedras fundamentais para assentarmos a tarefa de divulgação deste ecossistema, e para que as pessoas tenham a consciência que ele, e tudo o que é mostrado em “Montado”, pode desaparecer em pouco tempo, se não intervirmos. Por exemplo, há que saber retirar o gado a tempo para que os pastos recuperem, e que este ecossistema único na Europa, e dividido entre Portugal e Espanha, continue a existir tal como é. E que as pessoas em todo o mundo, e não só nos nossos dois países, percebam que vale a pena cuidar dele.