Uma pequena vila do interior viu nascer o naturalismo do pintor José Malhoa. Figueiró dos Vinhos de pequeno tem pouco, e não é só por causa das suas gentes, da sua arte ou do néctar de Baco. Não precisa de elogios, mas há quatro anos o executivo camarário da região achou que fazia ali falta um festival.

Não foi de modas e lançou um convite a uma trupe onde se inclui Lara Seixo Rodrigues, fundadora da Mistaker Maker, formada em arquitetura e um dos rostos da arte urbana em Portugal, para meter mãos à obra. Aliás, para fazunchar, dialeto oral local (laínte) que quer dizer fazer, usado por vendedores ambulantes de tecido que ali pelos idos do século XIX viajavam até àquela localidade. Assim nasceu um festival com o nome do dialeto em 2018, que tem novamente início já este sábado, dia 13 de agosto e durará até dia 21. Murais, visitas guiadas, workshops, piqueniques comunitários, música e um Jornal de Cordel.

Num ano montou-se a primeira edição, as ruas de várias zonas do concelho, desde o centro histórico a outras freguesias foram-se enchendo de visitantes dos quatro cantos do país, já não se queria outra coisa em Figueiró dos Vinhos. “O apelo que nos foi feito é que era preciso falar da região sem ser pelo trauma deixado pelos incêndios de 2017 no distrito de Leiria. Na última edição, em 2021, essa já nem era uma preocupação. O ‘Fazunchar’ ganhou um espaço próprio na região e a nível nacional”, começa por contar Lara Seixo Rodrigues ao Observador. E que espaço foi esse? E o que é que a curadora e a sua trupe descobriram por aquelas bandas? “Assim que se entra aqui percebes que há uma aura diferente que não se consegue explicar. Conheces a história, a parte artística, a presença de nomes como de José Malhoa. E agora estamos mesmo a fazer [como o dialeto] algo por este território, inspirando artistas, transformando-o através da arte”, conta.

Essa luz vai trazer, este ano, artistas como Alba Fabre Sacristián, de Espanha, Mariana, a miserável ou Slim Safont que vão criar os seus murais, espalhados um pouco por todo o concelho. Slim Safont vai andar a tirar fotografias às pessoas que por lá passarem e só depois é que decide o que pintar.

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A edição de 2020 © Fazunchar

Nesta quarta edição, o Fazunchar vai apresentar os resultados de outra das suas grandes apostas: as residências artísticas. As de 2021, que ficaram a cargo do ilustrador português Francis.co serão mostradas no Museu e Centro de Artes da região, com a exposição “Esquecido”, que fica até ao final do mês. Para este ano, os residentes são Mariana Vasconcelos (vídeo), Miguel Oliveira (fotografia) e Silly (música).

Em anos anteriores foram até ao Fazunchar Surma, Fred ou Homem em Catarse. Uns saíram com temas que lhes garantiram sucesso, outros foram apresentar os seus solos estreados em Figueiró dos Vinhos até ao Dubai.  Este ano, a novidade fica para outra arte: a literatura, pela mão de João Pedro Vala, que não abriu a boca sobre o que irá fazer. “Não revela para não estragar”, diz Lara Seixo Rodrigues”.

Todos estes nomes que vão fazendo a travessia até Figueiró dos Vinhos são sempre seduzidos pela luz. Sim, é habitual dizer-se que essa caraterística fica para os lados de Lisboa, mas Lara Seixo Rodrigues garante que “já não é a primeira vez, nem a segunda nem a terceira, que os artistas demonstram interesse em vir cá para perceber essa magia da luz que José Malhoa falava”. E, pelos vistos, não são só artistas.

Segundo a curadora, há espectadores repetentes nos quatro anos. Um casal de médicos que vem de propósito de Ovar para passar a semana inteira no festival. Visitas guiadas com uma média de 30 pessoas, que terão este mês uma volta dos vinhos — por ser uma região ligada a esta bebida, pintada por múltiplas adegas e tascas — e um piquenique comunitário no fim. “Acontecia muito por aqui. Há um ano fizemos uma ação com o espólio fotográfico de uma senhora e o mais espantoso foi ver o registo enorme de piqueniques. Convidamos toda a gente. Vêm pessoas de propósito de Lisboa que são de cá. Temos um casal que fica os dias todos. E são todos de idades muitos diferentes”, afirma.

O Jornal de Cordel. © Fazunchar

Por isso, durante oito dias é preciso dar corda aos sapatos. Ou ler o Jornal Cordel, para ir estando atendo ao que se passava no festival. Não é figura de estilo, falamos mesmo de um estilo de imprensa, repescado aqui de mais uma tradição antiga da região, que costumava levar as notícias até às pessoas. Mas, em vez de um jornal, havia um cordel com toda a informação disponível. “Era uma forma das pessoas terem acesso às notícias e aos anúncios. Decidimos recriar essa tradição, à frente da autarquia, no centro da vila, com a programação, onde é que os artistas vão estar a trabalhar, esboços dos murais, fotografias diárias. Os visitantes podem levar as fotografias, mas têm de deixar um bilhete”, pede a curadora.

Apesar de ser um território de baixa densidade, a memória continua a ter um papel importante. Portanto, a ação comunitária Vila Florida, já a decorrer, que vai homenagear a distinção deste território em 1998 de “Vila Florida d Europa”, é outra das alíneas do cardápio do Fazunchar. “Foi uma tradição que se foi perdendo. As pessoas decoravam as fachadas e as montras com flores. Primeiro naturais, depois de papel ou plástico. Nós estamos a fazê-lo este ano. No Facebook as pessoas já estão a colocar as flores. É o reviver de uma tradição que se foi perdendo”, comenta Lara Seixo Rodrigues.

Pelo que se percebe, o festival vai fazendo o seu caminho. O balanço “muito positivo”, com um circuito de entidades e associações da região já fortalecido, não deixa de vir atrelado com um desafio maior — e talvez eterno — da desertificação do interior. As enormes restrições orçamentais associadas a uma excessiva preocupação dos municípios e do governo em colar a cultura ao turismo, vão dando dores de cabeça, mas é preciso fazunchar. Parece caminho sem retorno, mas agora não é tempo de pensar nisso. É aproveitar, olhar para os murais e, vá, só mais uma vez: fazunchar. “A cultura nos territórios não deve ser só meramente turística”, termina Lara Seixo Rodrigues.  Afinal, não. Neste dialeto já (quase) toda a gente se entende.