Sempre foi considerado um prodígio, a determinada altura até mais do que Tadej Pogacar, mas também e ao mesmo tempo um daqueles corredores que era mais do que isso. Pela forma como encarava as corridas, pela maneira como não tinha grandes problemas em ter aqueles bate bocas públicos com quem se metia com as suas opções (Eddy Merckx, por exemplo), pela relação meio atribulada que ia mantendo sempre com a comunicação social. Agora, em Espanha, Remco Evenepoel estava diferente. E foi também por isso que, desde que assumiu a liderança na subida do Pico Jano, foi reforçando o seu favoritismo à vitória final, tendo algumas etapas a perder tempo até à queda que tirou Primoz Roglic desta corrida.

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Também houve alguns episódios paralelos que fizeram relembrar o “velho Remco” (velho tendo apenas 22 anos, entenda-se). Num deles, uma criança estava na zona da chegada dos corredores depois da etapa, pediu para que o belga assinasse uma camisola vermelha e depois da recusa com a cabeça o pai atirou a camisola para zona do corredor. Aí, Evenepoel ficou mal na fotografia; depois, justificou-se. “Eu assinei a camisola, quando fiz aquilo foi apenas por respeito pela minha recuperação. O pai não me deu um minuto sequer para descansar, foi só isso. Depois, assinei, claro”, disse. Polémica ultrapassada, o regresso a um Remco Evenepoel mais sorridente, falador e bem disposto do que é normal em corrida ou fora dela, mesmo com aqueles mind games de quando em vez que se centraram nos últimos dias em Enric Mas.

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O filho de peixe, neste caso o antigo corredor Patrick Evenepoel (que ganhou o Grande Prémio da Valónia em 1993), sabe mesmo nadar. Neste caso, correr na estrada. Mas o destino podia ser bem diferente, seja a nível de modalidade, seja na parte do ciclismo com um dia em 2020 que tão depressa não esquecerá.

Com apenas cinco anos, Remco juntou-se à equipa de futebol do Anderlecht, fazendo todo o trajeto nas escolinhas do clube até se mudar para os neerlandeses do PSV durante três anos. O ciclismo esteve sempre lá por influência do pai mas a cabeça estava nos relvados, voltando com 14 ao Anderlecht quando já estava no radar da Federação Belga de Futebol. Chegou a ser internacional Sub-15 e Sub-16 em quase dez ocasiões mas algumas desilusões no jogo e a perceção de que a morfologia apontava para outros caminhos empurraram-no em definitivo para o ciclismo a partir de 2017. E não demorou também a dar nas vistas.

Logo no ano seguinte, o belga ganhou as provas de estrada e de contrarrelógio dos Mundiais de juniores, não demorando a entrar no radar de todas as equipas profissionais. A opção recaiu sobre a Deceuninck Quick-Step, que quis fazer dele uma bandeira do presente e do futuro como começa a ser cada vez mais habitual nas principais formações (como a UAE Emirates, com Pogacar e agora Juan Ayuso). O início cumpriu todos os habituais passos sem queimar etapas até a uma primeira explosão em agosto de 2019, quando ganhou a Clássica de San Sebastian (terceiro mais novo de sempre a conquistar uma clássica), foi medalha de ouro no contrarrelógio dos Europeus e ficou com o bronze no mês seguinte nos Mundiais de elite, quando podia facilmente ter entrado nas provas Sub-23 para fazer a dobradinha.

2020 seria um ano de confirmação, começando logo com uma vitória na Volta a San Juan e outra na Volta ao Algarve, com triunfos numa etapa de montanha e noutra de contrarrelógio. A pandemia obrigou depois a mexer com o calendário mas voltou aos sucessos depois com a Volta a Burgos e o Tour da Polónia. O que podia correr bem estava a sair ainda melhor, com Remco Evenepoel a ganhar todas as provas que tinha feito, mas uma queda na Volta à Lombardia colocou tudo em risco – incluindo a própria carreira. Numa altura em que liderava a corrida, o belga desequilibrou-se na descida de Sormano, numa ponte, e caiu da estrada para o “vazio” numa altura de cinco metros, sendo ainda assim amparado pelas árvores.

Remco foi transportado até ao hospital de Como consciente mas os exames realizados detetaram uma fratura na pélvis (que não precisou de ser alvo de intervenção cirúrgica) e uma contusão no pulmão direito, o que deixaria o corredor durante largos meses fora de competição. Mais do que isso, ninguém conseguia prever até que ponto a carreira estaria ou não em risco ao mais alto nível e com os resultados que fizera na Quickt-Step desde 2018. “A minha temporada está terminada mas as coisas correram bem até aqui. Eu e a equipa estamos ansiosos do que possamos fazer em 2021 e posso prometer que vou tentar voltar mais forte, melhor ciclista do que era”, garantiu Remco Evenepoel depois desse acidente.

O regresso ficou mesmo reservado para o Giro de 2021, onde andou vários dias na segunda posição. No entanto, e na terceira semana, acabou mesmo por desistir. As vitórias no Tour da Bélgica e também no Tour da Dinamarca confirmaram que os problemas físicos tinham sido mesmo ultrapassados e que seria uma questão de tempo até voltar a ter o mesmo domínio que conseguia até à Volta à Lombardia mas ainda subsistia a dúvida sobre a relação com as grandes voltas de três semanas. Na preparação para a Vuelta, foi segundo na Volta à Comunidade Valenciana, ganhou de novo a Volta ao Algarve, venceu o Tour da Noruega e pelo meio ainda conseguiu a mítica Liège-Bastogne-Liège. Faltava “o”desafio”. E esta vitória categórica na Volta a Espanha, a primeira da equipa da Quick-Step numa grande volta, cumpriu o seu desígnio, quebrando também um longo período de mais de quatro décadas sem triunfos belgas.