A conferência que Olga Tokarczuk apresentou esta segunda-feira no Salão Nobre da Câmara Municipal de Lisboa foi uma viagem à república dos mortos, “a maior do mundo”. Partindo do romance Todos os Nomes, de José Saramago, a Prémio Nobel da Literatura descreveu, durante a quarta sessão das “Conferências do Nobel”, a relação ambígua que a cultura ocidental tem mantido com aqueles que morreram, destacando a forma como a filosofia cristã determinou essa mesmo relação. Defendendo que o papel do escritor é manter aberto o canal de comunicação com o mundo dos mortos, preservando a sua história e características individuais, a autora polaca procurou mostrar a importância da memória “nestes tempos apressados e anti-reflexivos” em que os vivos procuram descartar os mortos e as suas coisas “como velharias sem valor”.

“Na nossa cultura, os mortos pertencem ao mesmo catálogo que os espíritos”, começou por afirmar a escritora polaca durante a sessão, organizada no âmbito das comemorações do centenário do nascimento de Saramago. “Deixaram de existir fisicamente, foram excluídos do recenseamento da população, retiraram-lhes o número da segurança social e cancelaram-lhes os cartões de residência. Partiram.” Mas será que partiram mesmo? “Ainda estão cá”, garantiu Olga Tokarczuk. “Regressam em conversas, deixaram para trás coisas que ainda usamos, entram nos nossos sonhos. Conhecemo-los, falamos deles. (…) Quanto mais nos aventuramos na vida, quanto mais conscientemente a vivemos, menos transparentes e mais presentes os mortos se tornam. Na segunda metade das nossas vidas, assim me parece, já não os podemos ignorar.”

Explicando que “o processo de afastamento dos mortos da nossa existência” se prende com a visão dualista do mundo, “numa busca incessante por fronteiras claras”, a Prémio Nobel declarou que “também a vida e a morte são processos contínuos”. “Um homem morre, mas continuamos a ouvi-lo”, exemplificou. “A nossa atitude é ambivalente. Temos saudades dos mortos, mas quando nos aparecem, queremos livrarmo-nos deles — representam uma transgressão dolorosa da ordem do mundo. A sua presença torna-se perversa e perturba a ordem da estrutura básica do mundo.” Nem sempre foi assim — houve um tempo, há muito tempo, em que “o homem não tinha problemas com a sua presença”, mas tudo isso passou, apontou a autora.

[Reveja a conferência de Olga Tokarczuk sobre a relação com a obra de José Saramago:]

Apesar do afastamento a que a humanidade quer dotar os mortos, há momentos em que estes “nos batem à porta com mais insistência”. Na opinião de Olga Tokarczuk, esse regresso é hoje particularmente evidente na cultura pop. “As histórias de zombies alertam-nos contra o perigo do nosso mundo ensolarado ser inundado por energias entrópicas desprovidas de estrutura e ordem, ctónicas e eternas.” Mas os vivos estão mais interessados noutras questões — “em coisas novas, mais novas do que novas, mesmo que sejam piores e de má qualidade, mesmo que se estraguem à primeira utilização” — do que em ouvir o que os mortos têm para lhes dizer. Felizmente, estes são “surpreendentemente teimosos” e recusam-se a desaparecer por completo. “Habitam amiúde objetos que deixaram para trás, aninham-se em sótãos e caves, circulam pelas redondezas dos locais onde foram enterrados, tornando os cemitérios locais desconfortáveis para nós. Julgo que, no fundo, se revoltam contra o afastamento da morte nas sociedades modernas.”

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Confessando ter a consciência da herança dos mortos, confessando que quando caminha por um trilho sabe que “em tempos alguém o pisou” também, Olga Tokarczuk defendeu a importância de não deixar que os mortos, que nos deixaram “algo a que chamamos tradição”, se calem. A tradição é “a ideia de um mundo talhado à nossa medida, independentemente de ser verdadeira ou não”. “É um belo presente. Mas não nos esquecemos de que a tradução é aquilo que fica dos mortos caso os privemos da sua existência individual, a generalizemos e a desprovemos de nomes e rostos.”

O escritor desempenha um papel importância na preservação dessa memória. “A literatura é o palco ao qual sobem os mortos e de onde nos falam. Representam para nós peças de teatro e, por meio de personagens por eles criadas, estão connosco em permanente diálogo. A partir do palco, fazem-os perguntas e nós respondemos, ainda que em voz muito baixa (…). Porém, nós também temos oportunidade de fazer perguntas e este é um método melhor do que por mesas a girar [durante sessões espíritas]”, afirmou a autora polaca, admitindo que, enquanto escritora, sentiu “muitas vezes a estranha sensação” de que alguém a queria contactar. “Bate à minha porta como quem quer ser lembrado e ser notado. Ficam parados atrás da janela do tempo e, do movimento dos lábios e dos seus gestos, consigo ler as suas histórias”, “a maior parte das vezes rasgadas e incompletas, como se acreditassem que seria aquela pessoa que as iria unir e legitimar”.

“Trata-se de uma grande missão”, declarou Olga Tokarczuk. “Porque diz respeito àqueles cujos ficheiros se encontram nos lugares mais distantes e recônditos” do arquivo descrito por Saramago em Todos os Nomes, onde se guardam os nomes de todas as pessoas vivas e também mortas. “Entrar aí pode ser até perigoso”, mas é necessário, se tal  como o arquivista do romance saramaguiano, queremos “preservar a memória”.

Alberto Manguel: “Quando chegamos ao fim dos seus livros, sentimo-nos iluminados”

Alberto Manguel falou antes de Olga Tokarczuk. Coube ao curador das “Conferências do Nobel”, um ciclo organizado pela Fundação José Saramago em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa no âmbito das comemorações do centenário do nascimento de José Saramago, a apresentação da escritora, galardoada com o Prémio Nobel da Literatura em 2018. Destacando o ativismo cultural e político da autora de Viagens, Alberto Manguel descreveu Tokarczuk como “uma humanista tanto nos seus livros como na sua vida”. “Uma humanista no sentido de alguém que luta pelas liberdades humanas essenciais”, “sobretudo da palavra”, esclareceu o crítico e escritor.

Classificando os romances da Prémio Nobel como “histórias das histórias”, o crítico explicou que estes “exploram a existência humana individual na vasta maré a que chamamos história”, retendo “uma coerência lógica que faz com que o leitor reflita constantemente sobre o arquétipo do viajante, que Odisseu quer o migrante atirado ao mar”. São romances que falam acerca da “nossa condição nómada essencial como seres humanos”, disse o escritor argentino.

Declarando que nenhum aspeto do espírito humano é estranho à autora polaca, Alberto Manguel afirmou que Olga Tokarczuk “mergulha na sombra para melhor iluminar o mundo”. “Tokarczuk sonda nas suas histórias o fantasma a que chamamos destino, que nos conduz de dentro de nós próprios. Nunca é explícita, nunca é didática, mas quando chegamos ao fim dos seus livros, sentimo-nos iluminados”, disse.

“Jung escreveu: ‘Tanto quanto podermos discernir, o único propósito da existência humana é acender uma luz de significado na obscuridade do ser’. Isto é o que Olga Tokarczuk faz nas sua escrita e por isto estamos profundamente gratos”, conclui Alberto Manguel.