Chama-se Sergei Surovikin, tem 55 anos e nasceu em Novosibirsk, na Sibéria. Mas os dados mais relevantes da biografia do general que lidera agora toda a “operação especial” levada a cabo pela Rússia na Ucrânia é de que tem um passado de brutalidade em cenário de guerra — bem como responsabilidades na morte de manifestantes no golpe de Estado de 1991 e uma acusação de tráfico de armas.

Surovikin passou por várias academias militares na Rússia e estreou-se militarmente na guerra do Afeganistão durante a década de 1980. Seria em 1991, porém, que daria nas vistas e logo em território russo. Durante a tentativa de golpe de Estado de 1991, levado a cabo pela linha dura do Politburo contra Mikhail Gorbachev, Surovikin liderava uma divisão, apesar de ter apenas 24 anos, como recorda o site russo independente Meduza. Um dos tanques sob o seu comando tentou derrubar as barricadas erguidas pelos manifestantes — que apoiavam Gorbachev — e acabou por matar três pessoas. Surovikin passou mais de seis meses detido, mas a procuradoria de Moscovo acabou por abandonar o caso por concluir que o militar estava apenas a “cumprir ordens”.

Um “comandante implacável” nas guerras da Chechénia e da Síria — até com os próprios soldados

Quatro anos depois, o siberiano tinha novo encontro com a Justiça. Foi condenado por comércio ilegal de armas — terá roubado e posteriormente vendido uma arma de serviço, de acordo com o académico especialista no Kremlin Mark Galeotti. A pena de prisão suspensa que lhe foi aplicada foi, porém, revertida em recurso.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A sua carreira militar prosseguiu. Foi enviado para combater no Tajiquistão e, depois, na Chechénia. Foi aí que começou a construir-se a sua fama de comandante implacável. Pavel Felgenhauer, académico especialista nas forças armadas russas, nota num artigo publicado pelo think tank Jamestown Foundation que em 2005, quando comandava um divisão na Chechénia, Surovikin prometeu que, por cada soldado russo morto, seriam mortos três chechenos. Os feitos militares valeram-lhe uma canção, composta pelo coronel Vladimir Slepak, intitulada “Comandante”, recorda o jornal Komsomolskaya Pravda, próximo do Kremlin — num artigo onde também invoca a alcunha de “general Armagedão”, usada frequentemente pelos media russos.

A sua “brutalidade” não está, contudo, apenas reservada aos inimigos. Em 2004, um coronel russo de nome Andrei Shaktal suicidou-se com recurso à arma de serviço. De acordo com o relato do jornal Kommersant, o ato foi cometido depois de ter recebido uma reprimenda severa de Surovikin. E esse não terá sido o único caso de possíveis maus-tratos a subordinados: nesse mesmo ano, o tenente-coronel Viktor Tsibizov enviou uma queixa à procuradoria militar onde acusava Surovikin e outros militares de o terem espancado por diferenças políticas. Tsibizov tinha recentemente trabalhado como observador eleitoral da campanha de um político da oposição.

Ele é conhecido como um comandante bastante implacável que é duro com os subordinados e conhecido por ferver em pouca água”, resumiu ao The New York Times Michael Koffman, investigador especializado na Rússia.

O exemplo mais visível dessa implacabilidade foi o seu papel na guerra da Síria, onde a Rússia participa em apoio a Bashar al-Assad. “Quando fazíamos missões de combate na Síria, nem por um minuto esquecíamos que estávamos a defender a Rússia”, afirmou o general em 2017, segundo o jornal The Guardian. Essas missões de combate incluíram a total destruição da cidade de Alepo, em 2016, onde mais de 600 civis morreram.

Organizações como a Human Rights Watch acusam Surovikin de ser um dos comandantes que levou a cabo várias violações da Convenção de Genebra, quer em Alepo quer em Idlib. A HRW diz que os ataques visaram “casas, escolas, instalações de saúde e mercados — os locais onde as pessoas vivem, trabalham e estudam”. A organização diz também que, para além de alvos civis, os ataques foram perpetrados com recurso a “bombas de fragmentação, armas incendiárias e ‘bombas-barril’ improvisadas”, armamento banido pelas convenções internacionais.

A estratégia seria deliberadamente a de atacar infraestruturas civis para provocar o terror, como confirmou uma fonte próxima do Kremlin ao Meduza. “Surovikin não é sentimental”, disse a mesma fonte. Um antigo funcionário do ministério da Defesa russo foi ainda mais longe no retrato que traçou ao The Guardian: “Surovikin é completamente implacável, com pouco respeito pela vida humana”, disse. “Temo que as suas mãos venham a estar totalmente cobertas de sangue ucraniano.”

Escolha de Surovikin pode indicar que Putin quer agradar à ala mais dura do Kremlin

Mas Surovikin pode ter sido escolhido para este novo cargo de comandante-geral da operação na Ucrânia por mais do que a sua brutalidade. “Ele é um dos oficiais mais capazes da sua geração, com a reputação de ser alguém que resolve problemas”, notava o académico Galeotti em junho, na Spectator, destacando que os cargos que ocupou em departamentos militares de organização e a tarefa que teve em 2012 de criar a nova polícia militar denotam que é um organizador nato. “É um homem a que devemos estar atento, talvez seja até um futuro chefe do Estado-Maior [das forças armadas]”.

A União Europeia estava e, a 23 de fevereiro, um dia antes do início da guerra de larga escala na Ucrânia, incluiu-o na lista de sanções a várias figuras do regime russo.

Recentemente, Surovikin ocupava o cargo de comandante das forças russas na zona sul da Ucrânia e foi consigo a comandar as tropas que os russos conquistaram Severodonetsk. Fontes do Kremlin dizem ao Meduza que ao longo dos últimos meses se falava na possibilidade de Surovikin ser promovido.

A promoção, aparentemente, chegou agora. E a nomeação é particularmente relevante porque, enquanto que até agora o comando da operação na Ucrânia estava dividido por zonas e vários generais, estará agora concentrado nas mãos de um único homem. Talvez não por acaso, a decisão surge numa altura em que o exército russo sofreu vários reveses militares, perdendo terreno a sul, em Kherson, e a norte, em Kharkiv. E foi anunciada um dia após o ataque ucraniano à ponte na Crimeia.

Alexandre Vautravers, da Swiss Military Review, previu em declarações à Al-Jazeera que esta mudança irá revolucionar a operação russa em termos de organização e especulou que — ao contrário do que os ataques indiscriminados por todo o território desta segunda-feira indicam — os russos podem passar a concentrar-se apenas numa região da Ucrânia. “Aquilo a que assistimos é que agora apenas uma pessoa e um quartel-general vão planear e dirigir a operação. Mas é também um sinal de que a operação agora se irá concentrar numa área específica. Pode ser Lugansk, pode ser Donetsk, pode ser o sul. Mas estamos a assistir a um encolher da operação russa.”

Outros analistas, porém, destacam uma explicação diferente para a nomeação de Surovikin. O The New York Times fala numa possível tentativa de apaziguamento das fações mais radicais do Kremlin, que nos últimos tempos têm criticado as lideranças militares russas e pedido um endurecimento da guerra. Certo é que a nomeação de Surovikin foi bem recebida nestes setores: Yegeny Prigozhin, homem próximo de Vladimir Putin que fundou o grupo de mercenários Wagner, afirmou que o general é “o comandante mais competente do exército russo” e elogiou a sua postura aquando do golpe de 1991, dizendo que estava a cumprir ordens para “salvar o seu país”. Já Ramzan Kadyrov, afilhado político de Putin na Chechénia, declarou que a operação na Ucrânia estava agora “num par de mãos de confiança”.

Gleb Irisov, antigo tenente da força aérea russa que trabalhou com Surovikin, sublinhou ao The Guardian que o general mantém uma boa relação com a Wagner e outros setores da linha mais dura na Rússia. Definiu-o como um militar “muito cruel”, mas também “um comandante competente”. Recusou, no entanto, afirmar que a liderança de um só homem possa inverter totalmente o rumo da guerra: “Ele não será capaz de resolver todos os problemas. A Rússia tem falta de armamento e de homens”, sentenciou.