O objetivo era matar, no mínimo, três pessoas, porque “só a partir daí é que é considerado assassínio em massa”, explicou João Carreira, que começou a falar no Tribunal Central Criminal de Lisboa esta terça-feira, na primeira sessão do julgamento em que é arguido, a propósito do plano de ataque na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. À frente do coletivo de juízes, o jovem de 18 anos explicou logo que se interessou por assassínios em massa em 2018. Afinal, “como disse Andy Warhol, ‘todos terão os seus quinze minutos de fama'”, acrescentou.
“O que é que queria saber (quando via vídeos de assassínios em massa)?”, perguntou o juiz. E João respondeu: “Talvez o motivo pelo qual fizeram aquilo”. As respostas surgem sempre com breves palavras, mas João Carreira assumiu que começou a delinear o ataque à Faculdade de Ciências em janeiro deste ano e admitiu que o início do ataque está também relacionado com um desgosto amoroso que teve no final do ano passado. Mas foram indicados mais motivos: “Diria que era o facto da pressão, o facto de estar em Lisboa, de querer a atenção das pessoas da comunidade”, disse.
Não pretendia atingir ninguém em especial.”
Diz ter conseguido as armas no Olx e numa loja de caça situada em Lisboa e que estas terão custado cerca de 400 euros. Ainda consultou algumas vezes a dark web, mas acabou por nunca comprar nada, “porque (as armas) eram caras e porque também não podemos confiar em tudo o que se vê na internet“. Durante a fase em que adquiriu os materiais que constavam no seu plano, João disse ter percebido que estava a ser seguido pelas autoridades. De acordo com a versão de João, foi um trabalhador da loja que lhe terá dito “que a polícia tinha ido lá por causa das compras” que tinha feito. Este episódio terá acontecido no dia 8 de fevereiro, uma terça-feira, quando João se dirigiu a uma “loja chinesa para comprar líquido de isqueiro”. Percebeu, nesse momento, “que a polícia estava lá”. Acabou por não comprar o que pretendia e saiu da loja, contou.
A versão da Polícia Judiciária é semelhante. Luís Simas Miranda, inspetor da Polícia Judiciária, falou também esta tarde no tribunal, e fez uma linha temporal daquilo que aconteceu desde o momento em que chegou a informação do FBI. A informação do FBI chegou no dia 4 e, nesse mesmo dia, começou o processo de monitorização. No dia 7, João foi seguido pela polícia até à faculdade, onde realizou um exame e, no regresso a casa, que ficava na freguesia dos Olivais, o jovem “foi a uma loja e lá comprou uma lata de gás spray, líquido de isqueiro e comprou um pequeno maçarico”, explicou o inspetor da PJ. No entanto, Luís Simas Miranda garantiu que o jovem podia desconfiar que estava a ser monitorizado, mas nunca poderia ter a certeza.
Esta monitorização, por outro lado, permitiu às autoridades traçar um perfil de João Carreira, que foi descrito esta terça-feira por Arménio Pontes, inspetor-chefe da PJ:
Desde que saiu de casa dos pais e cá em Lisboa, é muito introvertido, muito cabisbaixo, sem qualquer interação. Quando chegou à faculdade, não interagiu com qualquer colega. Na sala de espera (antes do exame), não interagiu com qualquer pessoa, tinha os fones nos ouvidos e trazia um capuz na cabeça. No anfiteatro, também sempre com o mesmo comportamento: Entrou e ficou na segunda ou terceira fila de cadeiras. Terminou o exame, já varias pessoas tinham saído e várias estavam a comentar as respostas cá fora. E ele não. Um conjunto de pormenores de baixa autoestima, em que algo se passa a nível comportamental e que faria sentido, pelo que tínhamos recolhido, que estaria para acontecer.”
A preparação do ataque
Mas o plano não estava delineado ao pormenor. É que João Carreira explicou que a ideia “seria levar as armas para a faculdade, depois ir à casa de banho preparar-me e depois fazer o ataque durante cinco minutos”. Quando as questões do juiz se tornam mais específicas e este quis, por exemplo, perceber o que é que o estudante de Engenharia Informática iria fazer com as garrafas de vidro que as autoridades encontraram no seu quarto no momento da detenção, para fazer cocktails motolov, as respostas foram ainda mais vagas: “Não pensei muito bem nisso. Talvez entrar no auditório, atirar cocktails molotov, atirar setas, esfaquear pessoas.”
O ataque estava, inicialmente, planeado para o dia 3. Depois, foi adiado para o dia seguinte. E depois para dia 7 e, mais tarde, para dia 9. Qual seria, então, a razão para estes sucessivos adiamentos? A resposta foi dada em dois momentos: “Talvez porque não queria fazer aquilo”. Já na sessão na tarde, a responder à defesa, o estudante disse que, se não tivesse sido detido, provavelmente teria cancelado o ataque. “Acho que se não fosse no dia 11, não iria fazer.”
E, novamente, surge outra questão. Porque é que não queria fazer aquilo, ou porque é que tinha dúvidas? “Porque acho que não tinha coragem para matar uma pessoa”, respondeu. “Sinto que era péssima a minha ideia, porque moralmente é errado matar uma pessoa.”
– Que fim é que imaginava para si?
– Cometer suicídio.
– Como é que pensava suicidar-se?
– Esfaquear-me na barriga.
– Como é que teve essa ideia?
– Foi num videojogo, em que ele começou a esfaquear-se na barriga e morre.
O vídeojogo que levou João Carreira a pensar em cometer suicídio foi também o mesmo que o ajudou a inspirar-se para delinear o referido plano do ataque à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. João planeava demorar apenas cinco minutos a executar o plano, tal como acontecia no jogo que referiu. “O tempo de duração tinha a ver com o vídeojogo.”
O testemunho do inspetor da PJ dá, no entanto, outra visão, já que se focou, por várias vezes, no desabafo feito pelo jovem no dia da detenção. “Fogo, eu já devia ter feito isto na segunda-feira”, terá dito João, no momento em que já estava acompanhado pelas autoridades, em tom de frustração. “Ele estava a pensar alto, deixou passar isto, falou alto”, acrescentou o inspetor.
A primeira sessão de julgamento do jovem de 18 anos que foi detido no mês de fevereiro deste ano arrancou esta terça-feira e, à entrada do Tribunal Central Criminal de Lisboa, o advogado do jovem, Jorge Pracana, disse que, neste caso, “a injustiça, ou justiça, vai depender dos magistrados”. “Espero que duas delas (das quatro testemunhas que a defesa de João Carreira chamou) nos ajudem.”
João Carreira está acusado pelo Ministério Público pela prática de dois crimes de terrorismo — um na forma tentada — e pela prática de um crime de detenção de arma proibida. Ainda antes do início da sessão, Jorge Pracana considerou que a justiça foi célere, mas criticou a dimensão que o caso ganhou. “Não era necessário criar um alarme com aquela dimensão”, disse Jorge Pracana, referindo-se, sobretudo, à forma como o caso foi divulgado pelas autoridades. “Todos nós somos filhos, somos pais”, acrescentou.
Temos na frente um jovem com 18 anos, a quem eu quero garantir um futuro com alguma estabilidade. Tem uma vida pela frente, independentemente daquilo que ele fez, ou não fez.”
O seu plano seria levar a cabo um ataque na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que estaria marcado para o dia 11 de fevereiro. No entanto, este plano foi denunciado às autoridades internacionais alguns dias antes por “uma pessoa não identificada”, adiantou o Ministério Público no final de julho. Este caso envolveu o FBI, já que foi esta autoridade a transmitir “a informação à Polícia Judiciária, permitindo assim a realização e diligências que conduziram à detenção do arguido em flagrante delito”.
O jovem ficou em prisão preventiva logo em fevereiro, mas as medidas de coação foram alteradas em maio. Nessa altura, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu internar preventivamente o arguido no Hospital Prisional de Caxias.