Ter uma leucemia linfoblástica aguda de células T é como ter o enredo de Guerra das Estrelas a acontecer dentro do corpo. Na série de ficção científica há um Jedi — um guerreiro treinado para proteger o bem e seguir o lado bom da força — que sucumbe ao lado sombrio e se transforma no terrível Darth Vader. No nosso corpo, há células T, treinadas especificamente para proteger o organismo, que podem transformam-se em cancro.

A pergunta de Vera Martins é simples: como é que isto acontece? “Como é que estas células, que estão a aprender a defender-nos, mudam e seguem um caminho que as leva para o lado maligno da história?”, questiona a investigadora do Instituto Gulbenkian de Ciência.

A simplicidade da pergunta esconde a complexidade da resposta, que se procura há muito tempo. A doença é grave, não só porque o cancro é agressivo, como porque a leucemia linfoblástica aguda é dos mais prevalentes em idade pediátrica. O prognóstico das crianças atingidas é hoje incomparavelmente melhor com o dos anos 80. Há quarenta anos a maioria não sobrevivia à doença, hoje, os números inverteram-se: 80 a 90% das crianças sobrevive.

Mas estes números implicam que uma ou duas crianças em cada dez doentes não resistem à doença, o que é quase uma afronta à investigadora. E é para isso que está a trabalhar: para que o conhecimento gerado permita evitar que nos casos de leucemia linfoblástica aguda de células T (LLA-T) haja crianças que ficam do lado errado da percentagem.

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Um cancro em idade pediátrica já é um choque. Que uma criança morra de cancro é quase inaceitável.”

O sucesso de viragem das percentagens nos anos oitenta deveu-se sobretudo a intervenções médicas. “Não houve grandes mudanças na terapêutica, o que os médicos fizeram, e com sucesso, dada a sua necessidade urgente de resposta aos pacientes foi aumentar muito as dosagens e melhorar os protocolos, o que melhorou a eficácia dos tratamentos”, explica a investigadora. Isso salva muitas vidas, mas cria um problema adicional: muitas crianças recuperam da doença, mas com sequelas graves após o tratamento, que é muito agressivo. “E há também outras que respondem ao tratamento, ficam para todos os efeitos curadas, mas, ao fim de algum tempo — e nunca se sabe exatamente quanto — a doença regressa.”

O que nos leva de volta à necessidade de encontrar a resposta difícil para a pergunta simples: como? Em que momento é que células treinadas para ser jedis se começam a transformar num exército de guerreiros sith? É essa a resposta que Vera Martins procura alcançar com o projeto “Leucemia linfoblástica aguda de células T: Origem e recidiva”.

“O nosso foco é gerar conhecimento. É o primeiro passo para o desenvolvimento de novas terapêuticas. Na medicina, há uma necessidade de desenvolver novas armas que eliminem a doença em todos os pacientes sem que lhes causem efeitos secundários. Mas se não percebemos a causa, como é que se pode melhorar as terapêuticas? Se não sabemos exatamente quais são os nossos alvos, como é que dirigimos as terapias ao sítio correto?”

Percebendo o “como”, é também possível sonhar alto e tentar identificar dois tipos de biomarcadores: um que permita identificar as crianças que têm mais hipótese de ter uma recidiva após a cura, outro que vá ainda mais longe e permita saber que crianças podem vir a desenvolver a doença.

Para isso, o projeto vai ser feito com a colaboração de Klaus-Michael Debatin, do Ulm University Medical Center, na Alemanha. O investigador tem muitos anos de experiência em leucemia linfoblástica aguda e o hospital é um centro de referência em hematologia, o que permitirá acesso a amostras humanas em quantidade suficiente.

Mas para tentar chegar à origem desta leucemia, a investigadora precisou de ser ambiciosa e arriscar. Não vai usar os ratinhos de laboratório normais, que habitualmente usa. “Na minha equipa desenvolvemos um modelo animal que permite criar as condições para que, no processo de desenvolvimento para serem células T, as células dos ratinhos se transformem em leucemias. Mas podemos perguntar: serão estas leucemias mesmo iguais às leucemias nos humanos?”

Então, para eliminar essa dúvida, mobilizou reforços. Com a ajuda de Claudia Waskow, do Leibniz Institute of Aging, em Jena, na Alemanha, e de Andreas Krueger, da Universidade de Giessen, também na Alemanha, Vera Martins vai usar um ratinho humanizado, desenvolvido por estes investigadores. O modelo animal criado por estes investigadores, que Vera Martins vai aprender a usar, foi geneticamente alterado de forma a conseguir-se uma proeza genial: substituir todo o seu sistema hematopoiético por células humanas do cordão umbilical. “É um ratinho que parece um ratinho, mas, cujas células do sangue são humanas”, esclarece a investigadora. Isso permitir-lhe-á estudar o processo de diferenciação das células T humanas e perceber como, quando e porquê começam a sair do seu caminho de defesa em direção à formação de um cancro.

A investigadora, licenciada em Biologia Microbiana e Genética pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, fez o seu doutoramento no Instituto Max Planck de Imunobiologia e Epigenética, na Alemanha, na área das células T do timo, mas ainda longe do estudo das leucemias.

Foi só no seu pós-doutoramento, entre a Ulm University Medical Center e o German Cancer Research Center, em Heidelberg, na Alemanha, que a leucemia que lhe apareceu pela frente — literalmente — embora não a estivesse a estudar: um dos ratinhos cujas células T do timo estava a analisar adoeceu com uma leucemia. Podia ter ignorado e seguido com trabalho planeado, mas o “Como é que isto aconteceu?” que lhe martelava a cabeça não deixou. Acabou por mudar a sua linha de investigação e lançou as bases para o laboratório de Desenvolvimento de Linfócitos e Leucemias, que hoje dirige no Instituto Gulbenkian de Ciência.

A história é um bom exemplo do motivo pelo qual não gosta de falar de momentos ‘eureka’, mas antes em momentos “há-aqui-qualquer-coisa”. “Tudo é construído devagar, mas há momentos-chave que, regra geral, acontecem quando percebemos que a nossa hipótese estava errada ou quando vemos alguma coisa com que não contávamos. Então, saímos do caminho traçado para ir explorar alternativas porque pensamos: ‘Há aqui qualquer coisa’.”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto T CellAcuteLymphoblasticLeukemia: Origin & Relapse, liderado por Vera Martins, do IGC, foi um dos 33 selecionados (13 em Portugal) – entre 546 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde. A investigadora recebeu 682 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2022 encerram a 15 de novembro.