João Carreira voltou a sentar-se esta sexta-feira no tribunal, mas desta vez apenas para assistir ao relato das duas testemunhas que não foram ouvidas na semana passada. E várias questões começaram logo a ser esclarecidas, com o testemunho do perito da PJ Bruno Trancas, que analisou o comportamento e a saúde mental do jovem de 19 anos. “Estava afeto de uma perturbação depressiva, que influencia as escolhas, mas esta não era de tal forma grave que o impedisse de agir de outra forma“, explicou.
Além da já diagnosticada perturbação do espectro do autismo, João Carreira sofria também de uma depressão. No entanto, para o perito, estas perturbações “não lhe toldavam uma distorção daquilo que era certo ou errado”. “Apesar de ter a vontade, foi adiando. Parece-me que é uma evidência, que ele conseguia discernir o certo do errado”, acrescentou. Neste contexto, o perito considerou que a inimputabiliade deve ser afastada. “Existia algum impacto na maneira como ele vê o mundo, mas não vejo nada que leve à sua inimputabilidade”, explicou.
A segunda testemunha é uma das amiga de João Carreira, Rya. Apesar de a jovem de 22 anos dizer lembrar-se de poucos pormenores, contou que João lhe terá contado o seu plano e confirmou ter recebido uma mensagem com as seguintes palavras: “Vou matar-te no espaço de duas semanas”. No entanto, tanto o plano, como esta mensagem foram desvalorizados, uma vez que sempre considerou que fosse uma brincadeira.
Rya e João Carreira só se encontraram uma vez, na biblioteca da faculdade. Todos os restantes contactos foram feitos, segundo a jovem que testemunha esta sexta-feira, através da plataforma Discord. Foi, aliás, no Discord, que Rya recebeu fotografias dos objetivos que seriam utilizados por João no dia do ataque à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Através de um intérprete, Rya foi respondendo às questões do coletivo de juízes, e sublinhou várias vezes que achava “sempre que era uma brincadeira”. “Nunca pensou que era capaz de fazer isso”, acrescentou Rya. Mesmo depois de saber da notícia, a estudante continuou a ter dúvidas e “não acreditou, porque era amigo”.
O testemunho da mãe de João. “Não sou obrigada (a testemunhar), mas quero”
Tem dois filhos — um é o João e outro está na Alemanha a frequentar um doutoramento na área de engenharia bioquímica. “Sempre tratei os dois por igual, mas o João era especial. O João é muito meigo. Nunca foi uma pessoa violenta”, contou Cristina Real, mãe do jovem que está agora a ser julgado por ter planeado o ataque à Faculdade de Ciências. “Mãe, faz-me impressão ver mortos”, relatou.
Logo no início do testemunho de Cristina Real, o coletivo de juízes referiu que não estava obrigada a prestar o seu depoimento, se assim entendesse. “Não sou obrigada, mas quero”, clarificou. E Cristina Real descreveu o momento que levou João a ter acompanhamento psicológico. “O João fixava o olhar no colar da professora”, contou. E foi aí, aos nove anos, que João começou a ter acompanhamento psicológico e lhe foi diagnosticada perturbação do espectro do autismo. Entre os nove e os 17 anos, João teve apenas uma consulta por ano. Antes dos 18 anos, teve alta.
Cristina Carreira falou ainda sobre o facto de não saber que o filho tinha concorrido à Faculdade de Ciências, em Lisboa, e disse não ter dúvidas de que “alguém lhe pediu para vir para Lisboa”. A responsável, segundo a mãe de João, “é a Micaela”, o “amor platónico” de João, como este descreveu na última sessão.
Já o avô de João, Fernando Carreira, sublinhou que o neto não seria capaz de matar uma pessoa. “Impossível. Os pulsos dele são fracos”, acrescentou.
“Às vezes, aquilo que consideramos ser transparente, nem sempre é”, disse juiz
A defesa chamou ainda amigos da família e uma amiga mais próxima de João, que o conhece desde que nasceu. O testemunho de Mariana Carreira, que é apenas amiga, apesar de os dois apresentarem o mesmo apelido, descreveu o jovem da mesma forma que as restantes testemunhas: “Era uma pessoa muito afável, muito amigável. Se tivesse comida e outro lhe pedisse comida, ele era capaz de dar”.
Ele não conseguia cortar a comida sozinho. Conhecendo o meu amigo, jamais acho que ele era capaz de fazer o que quer que seja. Acho que ele não era capaz de fazer nada”, acrescentou esta testemunha.
Depois de Mariana Carreira ter dito várias vezes que não acreditava que João fosse capaz de colocar em prática um plano para atacar, o presidente do coletivo de juízes terminou esta intervenção, relembrando que o jovem admitiu que começou a interessar-se por assassinatos em massa em 2018: “Às vezes, aquilo que consideramos ser transparente, nem sempre é”.
A defesa trouxe ainda testemunhas, entre elas a professora de matemática e diretora de turma de João Carreira, que voltou, tal como a mãe, a descrever o jovem como “um menino especial”. “Era um aluno muito aplicado. Era muito bom a matemática, tinha um raciocínio muito rápido. Gostava muito de matemática, de física. A dificuldade maior era em educação física, dada a sua dificuldade de coordenação motora”, acrescentou.
“Moralmente é errado matar uma pessoa”
Esta é a segunda sessão do julgamento do jovem que planeou um ataque na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e existem ainda várias questões por esclarecer. Na semana passada, João, que está acusado pelo Ministério Público pela prática de dois crimes de terrorismo — um na forma tentada — e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, falou pela primeira vez em tribunal e contou o que o levou a planear o ataque, como elaborou o plano e quais os motivos que o levaram a adiar o ataque quatro vezes. No entanto, o seu discurso foi variando entre a vontade que, alegadamente, teria para fazer o ataque e a falta de coragem.
“Sinto que era péssima a minha ideia, porque moralmente é errado matar uma pessoa“, disse o jovem de 19 anos, na semana passada. Mas antes de dizer estas palavras, João tinha explicado que o seu objetivo era matar, no mínimo, três pessoas, porque “só a partir daí é que é considerado assassínio em massa”.
O plano de João contemplava um ataque na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que estaria marcado para o dia 11 de fevereiro — o jovem adiou o plano quatro vezes. No entanto, este plano foi denunciado às autoridades internacionais alguns dias antes por “uma pessoa não identificada”, adiantou o Ministério Público no final de julho. Este caso envolveu o FBI, já que foi esta autoridade a transmitir “a informação à Polícia Judiciária, permitindo assim a realização e diligências que conduziram à detenção do arguido em flagrante delito”.
O jovem ficou em prisão preventiva logo em fevereiro, mas as medidas de coação foram alteradas em maio. Nessa altura, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu internar preventivamente o arguido no Hospital Prisional de Caxias.