Patricia Highsmith é autora de um dos meus conselhos profissionais preferidos: “Se, ao mesmo tempo que é escritor, desenvolve outra atividade profissional, é importante guardar uma curta margem de tempo, quotidiana ou durante o fim-de-semana, que seja sagrada e, durante a qual, nenhuma interrupção é permitida. Duas ou três horas de trabalho durante cinco noites por semana, ou oito horas todos os sábados, ou três horas durante quatro noites por semana. Um escritor deve fazer o seu horário e persistir nele. Um sentimento de convicção em relação ao seu trabalho é primordial e, se se permitir interrupções e aceitar convites, este sentimento amolecerá lentamente.” Infelizmente, continuo a tentar pô-lo em prática desde que o encontrei num artigo de uma Lire, há mais de 20 anos.
Mas “Loving Highsmith” é menos sobre o trabalho da escritora e mais, muito mais, sobre a sua vida pessoal. Sobre a sua vida amorosa homossexual e as pistas que para ela possa ter deixado na obra, vício habitual de muito “hermeneuta”, como se a arte fosse um mero jogo de codificação e descodificação de autobiografias, mas que Highsmith, aparentemente, permite.
[o trailer de “Loving Highsmith”:]
Escrito e realizado pela suíça Eva Vitija (Basileia, 1973), o documentário que chega até nós via Filmin tem locução de Gwendoline Christie (a inesquecível Brienne of Tarth, da “Guerra dos Tronos”) e percorre, em menos de hora e meia, a vida da escritora, da infância no Texas, nos anos 20, à amargura dos solitários dias finais, na Suíça, em 1995. Através dos depoimentos de familiares e antigas amantes, trechos de adaptações cinematográficas das obras de Highsmith e da mesma leitura dos diários que, em vida, não teria provocado menos do que a ira da autora, Vitija compõe o retrato da vida sentimental possível de uma super-estrela da literatura, apaixonada, segura da sua sexualidade, mas comprometida, acima de tudo, com o seu labor e o silêncio diário a que obriga.
Highsmith, que habitualmente pensamos como a grande autora de policiais (rótulo que a própria descartaria), é aqui revelada no desencontro com o entorno na infância num dos estados mais conservadores da América e o abandono por uma mãe que amava. Depois, na vida dupla enquanto Claire Morgan, o pseudónimo literário com que assinou The Price of Salt, mais tarde reintitulado Carol, “o primeiro romance lésbico com final feliz”, quando frequentava os discretos bares de lésbicas da Manhattan dos anos 50 – afinal, ela era uma estrela da literatura desde os seus 29, 30 anos, quando, em ’51, Alfred Hitchcock levara para o grande ecrã Strangers on Train (entre nós, O Desconhecido do Norte-Expresso). E, mais tarde, nas paixões que viveu ao longo dos anos de residência europeia, em Inglaterra, em França ou na Alemanha, na bowiesca Berlim dos anos 70.
Enquanto as imagens de arquivo nos vão levando da jovem que, a dado passo, alguém descreve como “muito bonita para escritora”, à figura progressivamente mais dobrada sobre a sua timidez, interioridade, desencontro (Highsmith diria, nos últimos anos de vida: “Com quem tenho andado a dormir ultimamente? Franza Kafka!”), Vitija faz-nos olhar, de novo, para os clássicos levados ao ecrã de prata: o citado “Strangers on a Train”, Dennis Hopper como “O Amigo Americano” de Wim Wenders em 1977, a partir de “Ripley’s Game”, ou Matt Damon como esse mesmo “O Talentoso Mr. Ripley” (Anthony Minghella, 1999), sinuosa figura que Highsmith revisitaria em múltiplos livros e os estúdios de cinema esfolariam em reencarnações à mão de sucessivos atores e realizadores.
Com maior tempo de antena, fica “Carol”, filme com que Todd Haynes recuperou em 2015 esse The Price of Salt, “livro de raparigas”, nas palavras de autora, numa altura em que o grande público talvez já recebesse melhor a história feliz do encontro entre uma aspirante a fotógrafa (Therese, Rooney Mara) e uma mulher casada (Carol, Cate Blanchett).
No fim, há gatos e um romance inacabado. Opiniões ásperas e menos publicáveis. Os livros, os filmes, a memória. O compromisso do verdadeiro escritor com as obrigações da sua vida monacal, mesmo que, de permeio, tenha namorado metade do mundo.