Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

– Hubo espionaje?

O trabalho do Olé sobre a proximidade dos centros de treino de Argentina e Países Baixos poderia ser apenas um bom gancho para daí saltar para as mais variadas teorias. Afinal, medido de uma forma rigorosa, aquilo que separava os dois conjuntos dos vários espaços existentes nos 25 mil metros quadrados da Universidade do Qatar resumia-se a 467 passos (e se a Espanha ainda estivesse em Doha a quantidade de talento num espaço de terreno tão curto ficaria também para a história dos Mundiais). A andar, eram menos de uns cinco minutos; a correr talvez uns dois. E a única diferença entre ambos passava apenas pela antecipação que os sul-americanos conseguiram ter para reservar também para si o espaço onde por norma andam os cerca de 25.000 estudantes de quase 100 cursos para funcionar como um quartel general de toda a operação.

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Porque é que este tema tem a sua relevância? Voltamos aqui à parte da espionagem para recuperar uma das partes mais relevantes da conferência de Lionel Scaloni, quando o treinador argentino se mostrou bastante desagrado com o facto de os jornais terem revelado que Rodrigo de Paul não tinha treinado com a equipa que estava a ser testada como titular por questões físicas. “Não sei se jogamos pela Argentina ou pelos Países Baixos. O treino foi à porta fechada. Não entendo a necessidade de criar alarme. O adversário está atento a estas coisas”, disse, acrescentando que Di María não estava a 100%. “Todos os miúdos que fizeram parte da equipa contribuíram com o seu grão de areia. O Enzo é um miúdo que teve uma grande evolução. Fez bem as coisas. Acreditamos que pode dar ainda mais e que tem um futuro enorme”, sublinhou ainda.

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Uns elogios para o médio do Benfica quase que a quebrar o gelo de uma situação que toca particularmente à estrutura da equipa das Pampas e que contrastou com o estado de espírito que os Países Baixos viviam por estes dias também por culpa do homólogo de Scaloni, Louis van Gaal. Depois de cinco anos de inatividade e quando pensaria que a esta hora estaria sossegado a acompanhar o Mundial numa qualquer casa de férias no Algarve, o treinador de 71 anos não quis apenas vir a mais uma fase final – quis tomar conta dela. Foi quase como uma segunda vida entre a situação limite de ter superado um problema oncológico sem que na altura nenhum dos jogadores soubesse e o sentimento de união que conseguiu ver congregado em torno da recuperação. Do dançar a Waka Waka na chegada ao hotel após o triunfo com os EUA até à resposta à má relação com Di María a colocar pelo meio um possível beijo na boca a Depay, houve de tudo um pouco.

Era neste contexto que chegava um dos duelos com mais história nos Mundiais e com sucessos repartidos ao longo das últimasdécadas, da goleada neerlandesa na fase de grupos de 1974 com uma exibição arrasadora de Cruyff, Rep e companhia ao nulo com vitória nas grandes penalidades para os argentinos nas meias de 2014, passando ainda pelo triunfo dos Países Baixos nos quartos de 1998 com um golo de Bergkamp a fechar a partida e pela conquista da final de 1978 no prolongamento pela Argentina com Mario Kempes e Bertoni a fazerem os golos no tempo extra. Era o mesmo Kempes que esta sexta-feira, em entrevista ao La Vanguardia, dizia que Messi não necessitava de ganhar a coroa para ser um rei tal como Cruyff. No entanto, não era o mesmo nem para Messi nem para a Argentina que saísse sem coroação. E era isso que estava em causa.

A conquista desse Mundial foi um ponto de viragem para a Argentina, que como o El Mundo recordava viu saírem à rua 17 milhões de pessoas para festejar o título numa demonstração espontânea que depois ficou escondida de forma envergonhada na memória, por ter sido num período de plena ditadura militar. O futebol ali é uma religião, é um ópio, é tudo num mundo que se resume a quatro linhas e uma bola como não há mais nenhum local. “Necessitamos do futebol para que a verdade não nos mate”, resumia ao mesmo jornal espanhol o professor e diretor de teatro Jorge Eines. Não era preciso ir muito longe para ver onde chegam esses extremos, com a bandeira da Argentina estendida no chão com uma camisola 10 dobrada, a imagem de Diego Maradona e duas velas acesas com um adepto a pedir pela vitória. E era assim que Messi e companhia tentavam prolongar o sonho, era assim que Van Gaal e companhia o queriam terminar.

Bluff à parte dos argentinos, que afinal acabaram por entrar de novo com uma linha de três atrás com essa nuance de ser um 3x5x2 (ou 3x1x4x2) contra um assumido 3x4x1x2 dos Países Baixos, o jogo começou quase sem cartas: ases escondidos, jokers à espera de oportunidades que não apareciam, naipes que não eram capazes de baralhar e voltar a dar quando o jogo ficava mais encaixado. Sem qualquer chance de golo nos 25 minutos iniciais, o único lance que trouxe sensação de perigo teve Blind a não conseguir desviar de cabeça uma bola colocada ao segundo poste por Dumfries (16′). Até aí, o que fez a diferença foi a saída com bola controlada de Timber a partir de trás para criar o desequilíbrio, algo que Romero, Lisandro e Otamendi não conseguiam fazer. Messi só apareceu aos 22′, no primeiro lance em que Frenkie de Jong se atrasou.

Os neerlandeses num par de minutos ainda pareciam mostrar ter combinações para desmanchar o encaixe em que tinha caído o encontro, como numa jogada pelo meio entre Depay e Bergwijn que terminou com um remate ao lado (24′). Quem diria, um dos jogos cartaz dos quartos e qualidade de chegada ao último terço nem vê-la. Mas afinal, era um jogo cartaz porquê? Pela parte histórica? Sim. Por ter Messi? Sim, sobretudo isso. E se andavam à procura dele, ele, ou Ele nesta catedral que se tinha voltado a transformar o Estádio Lusail, apareceu de forma decisiva numa jogada em que De Jong não estava no espaço entre linhas, Aké fez o pior que foi não arriscar mas dando metros para pensar e o capitão só teve de fazer um passe sem olhar para o movimento de chegada de Molina (35′). E Aké não aprendeu mas depois o remate do 10 saiu fraco (40′).

Van Gaal tentou colocar o jogo no mesmo patamar tático ao intervalo, tirando de campo De Roon e Bergwijn para lançar os médios Berghuis e Koopmeiners e assumir um esquema mais próximo do 3x5x2 argentino com Gakpo mais na frente com Depay. Pelo menos era essa a ideia na teoria, a prática saiu meio ao lado não só porque não acrescentou muito na frente como foi deixando espaços para transições que na primeira parte não existiam. Mais uma vez, de forma inevitável, apareceu Messi. A criar, a fintar, a passar, a atirar ao ferro num livre direto que o próprio ganhou, a fazer o 2-0 de grande penalidade (73′). O jogo parecia ter chegado ao seu último capítulo até que Van Gaal juntou Weghorst a De Jong e tudo mudou.

O gigante de 30 anos que está emprestado pelo Burnley ao Besiktas conseguiu reduzir a desvantagem com um grande cabeceamento ao primeiro poste após cruzamento da direita (83′) e, no último lance do tempo regulamentar, já depois de inúmeras picardias à sul-americana a envolver todos os jogadores e uma invasão de campo que demorou a ser resolvida, fez mesmo o empate num livre em zona central bem delineado que colocou a bola pelo chão e não pelo ar para o remate cruzado que deixou Emiliano Martínez sem tempo para reagir, repetindo uma jogada que fizera há dois anos no Wolfsburgo (90+11′). O encontro seguia mesmo para prolongamento, com Lisandro Martínez a principal oportunidade após uma jogada fabulosa de Enzo (115′), que ficou também perto de marcar num remate desviado num adversário (116′) e outro poste (120′). O jogo seguiria mesmo para mais um desempate por grandes penalidades, com Emiliano Martínez a travar duas tentativas logo a abrir, Enzo a rematar ao lado e Lautaro Martínez a fechar o 4-3 final.

Quando se pensa que ele não pode fazer mais nada, Ele encontra sempre mais alguma coisa. E se na história do futebol ficou a célebre frase “De qué planeta viniste?” para Diego Maradona, aqui não há dúvidas: este planeta é de Messi. E está apenas a duas vitórias de chegar a uma consagração total aos 35 anos.

A pérola

  • Não houve propriamente nenhum recorde batido num só lance de génio que desbloqueou o que parecia fechado a sete chaves. Messi ficou a uma assistência do recorde de Maradona como jogador com mais golos “oferecidos” desde 1970, fica agora também a um jogo de igualar Matthaus como o elemento com mais partidas realizadas em fases finais do Campeonato do Mundo. Ainda assim, o bom de Messi é que nunca fica (ou ficará) reduzido aos números. E a forma como na primeira vez que teve pouco mais de um palmo de terreno fez um movimento digno de um predestinado para superar os neerlandeses, acrescentando a isso mais um golo de grande penalidade que aumentou para quatro em cinco jogos.

O joker

  • A entrada de Weghorst teve demasiado impacto na partida para passar ao lado e foi ele que levou o encontro para prolongamento com uma entrada de rompante para um estilo mais direto que valeu dois golos apenas em 15 minutos. No entanto, Emiliano Martínez acabou por ser a grande figura naquilo que fica de resultado, com duas defesas no desempate por grande penalidade que fizeram a diferença.

A sentença

  • Todos esperavam o expoente máximo da América do Sul e do futebol mundial numa meia-final que iria prender tudo e todos no Estádio Lusail e um pouco por qualquer canto, esse sonho cumpriu-se apenas por metade: a Argentina qualificou-se e somou a quarta vitória consecutiva neste Mundial depois do desaire inaugural com a Arábia Saudita, o Brasil perdeu no desempate por penáltis frente à Croácia após sofrer o empate aos 117′ e está afastado da prova (e Tite já não é selecionador). Ou seja, em vez de Messi vs. Neymar haverá um Messi vs. Modric. E o futebol agradece na mesma.

A mentira

  • Xavi Simons, que este verão assinou a custo zero pelo PSV após perceber que no PSG não teria as hipóteses que queria (e tinha sido por isso também que saíra do Barcelona…), chegava a este Mundial como uma potencial surpresa nos Países Baixos. Aliás, quem o visse passar na zona mista e a forma como dizia que não queria falar fazia adivinhar que estava ali um potencial Messi ou ainda maior. Afinal, jogou sete minutos com os EUA. Aos 19 anos, Simons não deixa de ser um craque mas terá de esperar ainda pelo seu tempo (e provavelmente ter mais humildade para agarrá-lo). Já Dybala nem sequer chegou sequer a calçar por motivos que só Scaloni pode explicar. Perdeu ele mas não só…