O primeiro volume de “Kill Bill” saiu no final de 2003. Por essas alturas, Nicolas Winding Refn dava os primeiros passos na carreira, com três filmes no currículo, um dos quais “Pusher” (1996), retrato sujo do submundo da droga em Copenhaga, que lançou carreiras de atores como Mads Mikkelsen ou Kim Bodnia. “Pusher” virou trilogia (os outros dois estrearam em 2004 e 2005) e estabeleceu uma linguagem para a ficção audiovisual criminal nórdica — estão lá os primórdios do fascínio pelo que chamamos de nordic noir. A violência bruta e uma estética de entranhas complicam o regresso à imagética, algo que até o próprio Winding Refn recusa no regresso ao submundo do crime de Copenhaga, fazendo uso de outras técnicas para contar uma história. É isto que encontramos em “Copenhagen Cowboy”, na Netflix (estreia-se sexta feira, dia 6).
Seis episódios sobre uma protagonista, Miu (Angela Bundalovic), à procura de vingança. Cheira a “Kill Bill” misturado com fantasias primárias de videojogo. Apresentada como uma criatura desamparada no inferno, Miu vai crescendo aos olhos do espectador como um lobo em pele de cordeiro. Procura vingança, vingança terá. “Parece um menino” (num fato-de-treino azul), diz alguém no primeiro episódio. E, de facto, parece. O ar franzino contradiz com o talento para destruir gangues sérvios, chineses e demais com um plano que parece ir rolando ao sabor do vento.
Uma vítima da guerra da ex-Jugoslávia, subentende-se, servindo de mercadoria de uma gangster sérvia que ajuda o irmão no negócio de prostituição e sabe-se lá mais o quê. Miu, aprende-se nos primeiros minutos, tem qualquer coisa de sobrenatural. Traz boa sorte, estar por perto pode realizar os impossíveis. Foi parar àquela casa por causa disso. A gangster, apesar de andar perto dos cinquenta, sonha em engravidar, entre outros itens de uma lista: por exemplo, espera que o encantamento de Miu torne o seu jardim (sem metáforas) mais bonito.
[o trailer de “Copenhagen Cowboy”:]
Apesar de estar na Dinamarca há duas décadas, Miu continua ilegal. O poder que carrega tornou-a numa mercadoria desejável que, até então, nunca usou de livre vontade ou para o seu proveito. O início de “Copenhagen Cowboy” vira então o momento de desabrochar, quando percebe que a situação de mercadoria será inultrapassável se não fizer algo. E que o algo passa por também ajudar os outros, o próximo, mulheres que estão numa situação semelhante ou próxima da sua.
Daqui nasce o caminho da vingança: primeiro com esta família sérvia; depois com gangues chineses; e de regresso à máfia dos Balcãs, onde se dá o encontro com dois atores de “Pusher”, Zlatko Buric e Slavko Labovic, num evidente piscar de olhos às personagens do passado. Nicolas Winding Refn não larga o passado, como não larga o estilo que o marca desde finais da primeira década deste século e o arquétipo de herói solitário, calado e impenetrável. Antes na pelo de uma personagem masculino, aqui por inteiro em Miu e numa brilhante Angela Bundalovic.
Isto torna “Copenhagen Cowboy” no “Kill Bill” de Nicolas Winding Refn. Ao contrário de Tarantino, aqui não há homenagens a outros, Refn presta homenagem a si próprio, numa hiperventilação do próprio estilo. Há quem goste, há quem odeie. E há também, nesta – para já – minissérie de seis episódios, uma brincadeira com a ideia de obstáculo e superação, muito videojogo, onde cada episódio parece um novo nível a protagonista. Conforme se avança, ela também vai ficando mais forte aos olhos do espectador.
Funciona muito bem no nível mais terreno da série, naquilo que se pode considerar “natural”. Porque, em paralelo à história de Miu, há a de Nicklas (Andreas Lykke Jørgensen), um miúdo rico incapaz de se tornar homem que é uma das várias personagens masculinas assoladas pela simbologia do porco impressa por Nicolas Winding Refn desde os primeiros momentos (há muitos homens-porco ao longo dos seis episódios). Nos circuitos em que Miu se movimentará, Nicklas procura prostitutas para as matar. Um lado vampiresco que ajudará a série a realizar a promessa do sobrenatural no último episódio, algo tácito no dom de Miu mas que se mantém como incógnita até aos minutos finais.
Chegado aí, Nicolas Winding Refn assume vários riscos: o de deixar as suas reais intenções para o final, como se estivesse a enganar o espectador até então — “Afinal, a série não é sobre isto, mas sobre aquilo”; e o de confiar que uma segunda temporada dará a Miu as verdadeiras roupagens de heroína que, afinal, se ficaram por cumprir. Arriscado, mas não errado, “Copenhagen Cowboy” cumpre o desígnio de uma série do realizador dinamarquês, três anos depois da boa surpresa que foi “Too Old To Die Young” (Prime Video).
Um regresso apropriado à Copenhaga do realizador em 2023. “Copenhagen Cowboy” tem um tom deslocado que joga contra o formato muito rotineiro das minisséries de seis episódios. Fica a sensação que termina quando está a começar. Se acabar aqui, tudo bem, a história desta cowboy chamada Miu completa-se, também, por persistir uma insatisfação em não saber mais da sua história: há uma contenção ao longo de toda a série, seria pouco razoável esperar que ficasse resolvida no final. Mas Nicolas Winding Refn lança mais dúvidas naqueles minutos finais, dúvidas para as quais nunca haverá uma resposta imediata ou fácil. Percebe-se, nesse momento, que “Copenhagen Cowboy” é toda ela um cliffhanger que arruma com o estereótipo atual dos cliffhangers.