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A cripta da atual Basílica de São Pedro é mais do que um local de repouso para santos e pontífices: é também um elemento de ligação aos primeiros dias da Igreja, às suas origens e aos seus fundadores. O local em que Bento XVI ficará sepultado não é apenas o túmulo que já recebeu os restos mortais de João Paulo II.

A importância desta cripta, destinada precisamente ao repouso de antigos pontífices, é amplificada pela proximidade com o sítio onde se encontram os restos mortais do pai da Igreja Católica, alegadamente identificados em 1950 (na altura, foi dada como prova uma inscrição numa parede próxima da sepultura, que supostamente identificavam os restos como sendo de São Pedro), bem como pela importância de Joseph Ratzinger para o catolicismo atual.

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A cripta, ao nível do solo onde se situava a primeira Basílica de São Pedro, remonta a um período já longínquo da história cristã durante o Império Romano. O lugar onde a basílica se ergueu, na Colina do Vaticano, começou por ser destinado ao culto de uma outra divindade: a deusa da natureza e da terra, Cibele. Era aqui também que uma pequena povoação, justamente conhecida por Vatica, habitava, ganhando a vida sobretudo através do comércio de argila.

Foi durante os séculos seguintes que a ligação do local com o Cristianismo começou a tomar forma. Segundo a tradição, no ano 67 d.C., o apóstolo São Pedro, foi martirizado e crucificado de cabeça para baixo no Circo de Nero. De acordo com a lei romana da época, que proibia o enterro de mortos dentro dos limites da cidade, o seu corpo foi sepultado numa cripta próxima do Circo – justamente na Colina do Vaticano.

A tumba ficou então votada ao esquecimento durante quase três séculos até que, em 322, o Imperador Constantino pôs fim à perseguição aos cristãos e instituiu no império a liberdade de culto religioso, aproveitando ainda a oportunidade para honrar São Pedro com a construção de uma basílica, mesmo por cima do seu túmulo.

Constantines Old St. Peters Basilica As It Looked In The 4Th Century,

Gravuras da antiga Basílica de São Pedro

Através de plantas da antiga Basílica de São Pedro que chegaram aos dias de hoje, é possível ter uma noção da grandeza do empreendimento: com 110 metros de comprimento e 30 de altura, cinco naves e mais de cem colunas em mármore, o edifício levou 30 anos para ser construído. A imagem do seu exterior, modesta e sem adornos – em contraste acentuado com a opulência do Vaticano moderno – chega-nos através do quadro de Rafael “Incêndio no Borgo”, de 1517.

Com efeito, a basílica serviu também como um dos mais importantes repositórios de arte antiga do seu tempo, em linha com a sua importância como local sagrado. Entre os que sobreviveram até hoje estão a “Navicella”, um mosaico de Giotto di Bondone que retrata Jesus Cristo a andar na água e a chamar São Pedro (e que foi quase totalmente destruída durante a construção da nova basílica, sendo restaurada no século XVII), e fragmentos de um mosaico do século VIII, “A Epifania”, que foi transferido para a sacristia da igreja romana de Santa Maria em Cosmedin, e que exemplifica a grande qualidade artística que se perdeu para a história.

A basílica de Constantino tornou-se no centro do Cristianismo durante 1200 anos, onde papas eram coroados. Foi aí que, por exemplo, em 800, Carlos Magno foi proclamado imperador pelo Papa Leão III – numa tentativa de reclamar para o reino católico o legado de Roma, que havia sido continuado pelo Império Bizantino após a queda do Império Romano.

Ao longo dos séculos, o edifício foi sofrendo reparações, com especial atenção prestada ao túmulo de São Pedro. Numa entrevista ao jornal espanhol ABC, em 1967, já depois da suposta identificação dos restos mortais do apóstolo, o escritor e sacerdote José Luis Martín Descalzo explicou a complexidade da ruína:

O túmulo era um dos mais curiosos documentos arqueológicos existentes: uma espécie de ‘caixa chinesa’ em que cada túmulo continha em si um outro mais antigo. O Grande Altar da Basílica de São Pedro era, na verdade uma cobertura daquele que foi construído no século XII por Calisto II. Este, por sua vez, encerrava um terceiro altar, construído no final do século VI por São Gregório Magno e aquele, uma vez mais, encerrava dentro um monumento construído no ano 315 pelo Imperador Constantino.

No centro deste monumento, arqueólogos identificaram ainda uma pequena edícula funerária que, segundo Martín Descalzo, fora construída por volta do ano 150 d.C. “para proteger um túmulo muito humilde do primeiro século: um simples buraco na terra coberto com duas telhas vermelhas”.

A basílica foi sobrevivendo com maior ou menor desgaste até ao século XVI, altura em que foi demolida por ordem do Papa Júlio II, com vista à construção de um novo edifício. O projeto original passava por conservar a velha Basílica, mas depressa o pontífice mudou de ideias – uma decisão que escandalizou o catolicismo da época, que considerava que ela representava, justamente, a continuidade da Igreja desde os dias de Pedro.

Ainda assim, aquando da construção da nova basílica, os planos originais foram alterados tendo em conta a preservação dos restos mortais das várias figuras da Igreja que jaziam no local, bem como a localização do altar original dentro da nova estrutura que o abrigaria — e junto do qual Bento XVI vai agora repousar.