O Ministério Público instaurou um inquérito relacionado com as denúncias de más práticas alegadamente cometidas no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, mais conhecido como Hospital Amadora-Sintra, confirmou fonte oficial ao Observador. O processo está a decorrer no Departamento de Investigação e Ação Penal da comarca de Lisboa Oeste, secção da Amadora.

Em causa estão 18 denúncias que um dos médicos do serviço de cirurgia geral do hospital, ex-diretor dessa mesma unidade, endereçou ao conselho de administração do Amadora-Sintra, acusando as equipas médicas de ter provocado a morte ou danos irreparáveis em doentes acompanhados naquele hospital. O caso foi noticiado pelo Expresso na semana passada e confirmado pelo Observador.

Não há má prática “sistemática” na cirurgia do Amadora-Sintra, conclui análise da Ordem dos Médicos. Maioria dos casos já analisada

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Quatro casos de más práticas. Um doente ficou sem metade do fígado, mas afinal não tinha cancro

O Observador apurou entretanto que a Ordem dos Médicos já finalizou a análise dos casos denunciados e que concluiu não haver violações sistemáticas às boas práticas médicos no serviço de cirurgia geral do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca. O relatório redigido pelo perito destacado para o caso, presidente do Colégio da Especialidade, já foi enviado para aprovação dos restantes membros da equipa e ficará finalizado ao longo da próxima semana.

Da totalidade dos casos acompanhados, havia sete casos com acusações de violações às boas práticas médicas — as restantes diziam respeito a outras alegadas irregularidades. Em três dessas sete, não se encontraram sinais de negligência dos profissionais de saúde. Mas há quatro em que se encontraram evidências de possível má prática médica, que serão comunicadas às autoridades de saúde — um dos quais especialmente grave: o caso de um doente a quem foi retirado 50% do fígado por suspeitas de doença oncológica que depois não se verificou. O doente veio a morrer.

Os médicos que acompanharam o caso encontraram sinais de um tumor nas análises e exames realizados anteriormente, mas o entendimento dos peritos é que devia ter havido mais “prudência” e “bom senso”, uma vez que os resultados não eram totalmente conclusivos. É o único caso que, no entendimento da comissão destacada para estudar as denúncias, se pode falar de uma “mutilação” de um órgão — termo utilizado no documento que chegou via email ao conselho de administração do Amadora-Sintra.

Nem todos os casos denunciados diziam respeito a supostas más práticas clínicas, concluiu a comissão destacada para investigar as denúncias. Dos 18 casos apontados pelo denunciante, quatro referiam-se a cirurgias efetuados noutros hospitais — o Hospital Santa Maria e o Curry Cabral — e não diziam respeito a más práticas clínicas: o médico considerava apenas que se estava perante uma “desvalorização institucional” pelo facto de os doentes terem sido transferidos do centro de referência do Amadora-Sintra para outros locais.

Outros três casos também foram criticados por terem sido acompanhados noutro serviço do mesmo hospital — o de medicina interna, um dos quais nunca chegou a ser operado. O autor das queixas enviadas ao conselho de administração do Amadora-Sintra entendia que, nesses casos, se tinha verificado um tempo de espera elevado, “incapacidade estratégica” e uma “abordagem clínica superficial” que culminou em “consequências graves para os doentes”. Tal não se terá verificado, no entendimento dos peritos, apurou o Observador.

De resto, quatro casos de alegadas más práticas não ficaram comprovados na análise do perito, António Menezes da Silva: o cirurgião denunciante afirma que o óbito dos quatro utentes foi causado por violações às regras e princípios médicos, mas a Ordem dos Médicos entendeu que a morte foi consequência do quadro clínico complexo dos doentes. Todos tinham situações terminais e a morte não foi precipitada por negligência médica.

Denunciadas cirurgias no Curry e Santa Maria por “desvalorização” do Amadora-Sintra

Quatro dos casos de alegadas más práticas “sistemáticas” no serviço de cirurgia geral do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca denunciados ao conselho de administração entre outubro e novembro são de cirurgias que não foram realizadas no Amadora-Sintra.

Em causa estão três procedimentos ocorridos no Hospital Curry Cabral (Centro Hospital Lisboa Central) e um no Hospital Santa Maria (Centro Hospitalar Lisboa Norte). Mas a queixa não refere quaisquer más práticas clínicas nesses quatro casos — apenas situações que, do ponto de vista organizacional, o denunciante considera “desprestigiantes”, apurou o Observador.

Para compreender os argumentos de Vítor Nunes, autor da queixa segundo a qual “morreram ou foram mutilados” doentes no Amadora-Sintra, é necessário olhar para o mapa dos centros de referência em Portugal — unidades que tratam doenças raras ou extremamente graves, necessitando por isso de tecnologias e valências técnicas diferenciadas.

O Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca tinha dois desses centros, que foram atribuídos por concurso: o do Tratamento de Cancro do Reto e o Centro de Referência de Cancro Hepatobilio/Pancreático. Ambos estavam incluídos no serviço de cirurgia geral e eram coordenados pelo médico cirurgião. Com a demissão do cargo de diretor do serviço de cirurgia geral, em fevereiro do ano passado, Vítor Nunes também abandonou a liderança dos centros de referência.

Nenhum deles parou de funcionar. Neste momento, o Centro de Referência do Tratamento de Cancro do Reto está a ser coordenado por Vasco Geraldes e o Centro de Referência de Cancro Hepatobilio/Pancreático está nas mãos de Carla Carneiro.

Como há um funcionamento em rede entre centros de referência da mesma especialidade, em que certos casos são preferencialmente acompanhados numa instituição em particular dado o nível de diferenciação dos seus profissionais, alguns doentes podem ser transferidos para serem operados noutros hospitais. Foi o que aconteceu em quatro dos casos referidos na denúncia.

Na queixa enviada ao conselho de administração do Amadora-Sintra, o médico cirurgião considerou que há uma “desvalorização institucional” na transferência de doentes para outros hospitais. Mas não aponta problemas no cumprimento da “legis artis”, isto é, das regras e princípios técnicos e científicos por que se devem pautar todos os atos clínicos.

Analisados todos os casos, de resto, a peritagem realizada pelo presidente do Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos por solicitação do hospital, que abriu um inquérito no dia seguinte à receção da denúncia, recusa a tese de que as más práticas clínicas são “sistemáticas” no Amadora-Sintra.