Claro que os trabalhadores têm de concordar com um eventual procedimento de reclassificação [do seu vínculo profissional].” A garantia é de Elisabetta Gualmini, a eurodeputada italiana que redigiu a proposta de regulação do trabalho nas plataformas digitais (como Uber ou Bolt) que vai guiar o Parlamento Europeu nas negociações com o Conselho da UE e a Comissão Europeia. Segundo explica, a intenção não é que todos os trabalhadores sejam “automaticamente” considerados empregados da plataforma, mas sim colocar nas multinacionais a responsabilidade de provar que o trabalhador não é seu subordinado.

Essa tem sido uma das críticas mais audíveis do lado das plataformas digitais e de alguns grupos de eurodeputados que se opõem ao rumo que a orientação do Parlamento Europeu está a tomar: que haverá uma reclassificação em massa dos trabalhadores de independentes para dependentes.

Numa declaração enviada ao Observador, Sara Skyttedal, a eurodeputada sueca que, por não concordar com a proposta de orientação aprovada na Comissão de Emprego, pediu a reabertura da discussão (um pedido que será submetido a votos, em plenário, em fevereiro), usa esse argumento para fundamentar a discordância: “O texto adotado estabelece uma presunção geral, segundo a qual todas as pessoas que trabalham através de uma Plataforma de Trabalho Digital — incluindo os genuínos trabalhadores por conta própria — estão em risco de serem considerados empregados”.

Parlamento Europeu dividido. Grupo de deputados tenta travar proposta sobre regulação nas plataformas

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A eurodeputada vai mais longe, e insinua que a atual posição da Comissão de Emprego faria com “dezenas de milhares de trabalhadores genuinamente independentes que utilizam a internet para encontrar clientes são considerados empregados”, e não apenas os motoristas ou estafetas das plataformas digitais. Para muitos desses, argumenta, refutar a presunção de trabalho dependente com a plataforma “torna-se quase impossível”.

Mas Elisabetta Gualmini (dos socialistas e democratas) rejeita esta tese e diz que a intenção da orientação aprovada não é essa. “[A orientação] não vai trazer uma reclassificação automática dos trabalhadores. Isso são fake news. Isso é absolutamente impossível”, disse aos jornalistas, num briefing em Estrasburgo esta quarta-feira.

Segundo explica, a proposta não torna, à partida, todos os trabalhadores em dependentes da plataforma digital. Mas coloca nas multinacionais a responsabilidade de provar que o trabalhador é, de facto, trabalhador por conta própria e não seu subordinado. Isto se a autoridade competente, ou o próprio trabalhador, pedirem o reconhecimento de um vínculo dependente. “Basicamente acrescentamos um terceiro ator, uma terceiro instituição além dos sindicatos e dos próprios trabalhadores, para desencadear a presunção”, disse.

Ou seja, a autoridade de inspeção do trabalho (em Portugal seria a ACT), se detetasse evidências de que o trabalhador é um falso independente (essas evidências não estão listadas, como na proposta da Comissão Europeia), poderia acionar os procedimentos legais para que lhe fosse reconhecido um vínculo dependente com a plataforma. E caberia às plataformas provar que esse vínculo não existe, segundo uma lista de critérios que não está fechada e que dá aos Estados-membros alguma autonomia para os definirem.

E se o trabalhador quiser continuar como independente, mesmo que as provas apontem para que haja uma relação de subordinação? “Claro que os trabalhadores têm de concordar com um eventual procedimento de reclassificação“, diz.

A proposta da Comissão de Emprego gerou divisões no Parlamento e, aí, até mesmo dentro dos grupos políticos e das delegações. Sara Skyttedal reuniu um grupo de, pelo menos, 90 deputados (precisava de 71), para pedir que a orientação aprovada na Comissão de Emprego seja votada em plenário, o que vai acontecer a 2 de fevereiro. Será preciso uma maioria para que a intenção de travar a orientação vá avante. E isso não é garantido, mas se acontecesse atrasaria o início das negociações tripartidas, entre o Parlamento, a Comissão Europeia e o Conselho Europeu.

Elisabetta Gualmini tem esperança de que o processo ocorra rapidamente e a proposta final de diretiva seja aprovada até ao final deste ano. Uma expectativa diferente da ministra sueca dos Assuntos Europeus, Jessika Roswall, que numa intervenção no Parlamento indicou que a Presidência do Conselho da UE, que é sueca, está “empenhada em avançar com o trabalho no Conselho para permitir uma conclusão bem sucedida deste dossiê antes do final da legislatura” (que acaba em maio de 2024).

“O lobby não significa corrupção, mas não podemos ter uma lacuna desproporcional entre os que têm muito poder e os outros”

As práticas controversas da Uber que vieram a público através dos “Uber Files” foram a discussão no Parlamento Europeu, com alguns deputados a defender maior regulação e outros a argumentar que não se pode tomar a parte pelo todo.

Elisabetta Gualmini fica a meio caminho. Embora diga que “lobby não significa corrupção”, e que é importante para a tomada de decisões políticas, diz que não pode haver uma “lacuna desproporcional entre os que têm muito poder e os outros”. “Vi corredores cheios de lobbistas quando negociámos a diretiva das plataformas, fui bombardeada com pedidos de reuniões. Juntei-os numa sala com os representantes dos trabalhadores [que a própria convidou]”, afirmou, num debate no Parlamento Europeu.

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Já Salvatore de Meo, do PPE (centro-direita), alerta que “não devemos generalizar”. “Há um risco de estarmos a demonizar alguém, sem termos noção de que os factos deste debate aplicam-se a algumas pessoas. Temos de ter cuidado, não especular.”

Leïla Chaibi, eurodeputada francesa do grupo da Esquerda, defendeu por sua vez que os “Uber Files” “confirmam aquilo que temos assistido nos últimos três anos” — “a forma como influenciam os legisladores”. “Querem ser eles a fazer as leis”, acusa.