Manifestantes que participaram nos protestos em Pequim contra a estratégia ‘zero covid’ admitiram à Lusa sentir agora algumas “dúvidas” e “remorsos”, após o fim da política ter suscitado uma crise de saúde pública no país.

“Talvez estivesse errada”, disse uma das participantes nos protestos ocorridos na capital chinesa, no final de novembro. “Agora vejo tantos idosos a morrer, hospitais sobrelotados e, sobretudo quando ouço alguém dizer que o pai morreu de covid, não posso deixar de me sentir culpada”, acrescentou a ex-manifestante, que solicitou anonimato.

Os protestos contra a política de ‘zero casos’ de covid-19 irromperam em várias cidades da China no final de novembro. A estratégia chinesa incluía o isolamento de todos os casos positivos e contactos próximos, o bloqueio de bairros ou cidades inteiras e a realização constante de testes em massa.

O gatilho para as manifestações pacíficas foi a morte de dez pessoas num incêndio na cidade de Urumqi. Imagens difundidas nas redes sociais mostram que o camião dos bombeiros não conseguiu entrar inicialmente no bairro, já que o portão de acesso estava trancado, e que os moradores também não conseguiram escapar do prédio, cuja porta estava bloqueada, em resultado das medidas de prevenção epidémica então vigentes no país. Face ao crescente descontentamento popular e colapso dos dados económicos, Pequim optou então pelo desmantelamento acelerado da estratégia.

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Em entrevista à agência Lusa, Ben Cowling, epidemiologista e estatístico na área médica da Universidade de Hong Kong, explicou que as autoridades chinesas optaram por um “salto imediato” de uma fase de contenção para uma fase de recuperação, abdicando de estratégias de mitigação para abrandar a curva de infeções. “Reduzir a altura do pico epidémico e distribuir os casos por um período de tempo mais longo podia ter salvado muitas vidas, enquanto os recursos de saúde estão sob forte pressão”, frisou.

A súbita retirada das restrições resultou numa vaga sem precedentes. Um estudo da Universidade de Pequim estimou que 900 milhões de pessoas contraíram covid-19 na China, ao longo das últimas semanas. O país asiático tem 1,4 mil milhões de habitantes.

De acordo com dados oficiais divulgados no domingo passado, a China registou quase 60 mil mortes nos hospitais ligadas à pandemia da covid-19, desde o levantamento das medidas de prevenção no início de dezembro. Ben Cowling considerou que aquele número está “certamente aquém” da realidade. Diferentes estimativas apontam para cerca de um milhão de mortos na China, ao longo dos meses de inverno.

O impacto da doença pode ser agravado pelos deslocamentos internos que marcam o feriado do Ano Novo Lunar. Centenas de milhões de trabalhadores chineses migrados nas cidades regressam esta semana à terra natal. “Exigi o fim dos bloqueios com entusiasmo, mas agora sinto-me receoso. É aterrador”, admitiu à Lusa outro manifestante, que também pediu para não ser identificado.

Após o levantamento das restrições, nacionalistas chineses culparam os manifestantes pelos mortos, acusando-os de serem “traidores” ao serviço de “forças estrangeiras”. Isto ilustra a politização da pandemia no país asiático, onde a estratégia de ‘zero casos’ de covid-19 foi assumida pelo líder chinês, Xi Jinping, como um trunfo político e prova da superioridade do modelo de governação chinês, após o país conter com sucesso os surtos iniciais da doença.

Face às acusações, uma das participantes nos protestos em Pequim admitiu ter por “um breve momento” sentido “dúvidas”. “Senti-me triste e débil com a mortalidade e caí na armadilha de me sentir responsável”, admitiu. “No entanto, passado algum tempo, voltei a ponderar sobre as razões e, hoje, tenho a certeza de que fizemos a coisa certa”, apontou.