Parece uma força de expressão, uma frase no sentido figurativo ou uma maneira de engrandecer quem já é grande mas não, resume apenas aquilo que se passou durante duas semanas em Melbourne. Novak Djokovic teve algum adversário com o passar dos dias e das rondas do Open da Austrália? Sim. Mesmo. Apenas um, o próprio. Houve o adversário Novak Djokovic atleta, aquele que nas três primeiras rondas levou a que tivesse de sair assistido durante os encontros ao problema na perna esquerda contraído ainda no Open de Adelaide e que levou a que tivesse uma gestão de esforço até com treinos cancelados. Houve o adversário Novak Djokovic pessoa, aquele que ao longo dos jogos se ia “passando” com os adeptos que se deslocavam à Rod Laver Arena com o objetivo único de provocar. E houve o adversário Novak Djokovic jogador, aquele que de quando em vez explodia com colocação de toalhas ou tempos entre serviços perdendo a concentração.

O único adversário de Djokovic é mesmo Djokovic: sérvio chega à final do Open da Austrália pela décima vez (e ganhou sempre)

Em tudo o resto, qualquer que fosse o adversário era em muitas fases um treino como aqueles que tinha de cancelar pela gestão física. Aliás, os três últimos encontros até ao final foram globalmente ainda mais um passeio até à partida decisiva do que os três primeiros, mesmo defrontando adversários mais cotados como Alex de Minaur, Andrey Rublev ou Tommy Paul. No entanto, era fácil perceber que este não era mais um torneio para o sérvio. Era “o” torneio. Como se fosse o único Grand Slam, como se estivesse em causa um final de tudo, como se nunca tivesse ganho um Open da Austrália que trata por tu com o recorde de nove vitórias. Tudo pelo que se passou há um ano, quando entre uma detenção e um julgamento em tempo recorde ficou sem a condição de favorito e ganhou o peso de uma deportação numa história mal contada.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Quando outros se lesionam são as vítimas, quando sou eu estou a fingir…”: Djokovic ataca dúvidas sobre lesão (falando sem nome de Nadal)

Djokovic preferia ter apenas o carinho e o apoio de milhares de adeptos sérvios que têm enchido o interior e o exterior do complexo, seja na Rod Laver Arena, seja nos courts de treino. Qualquer pessoa no seu lugar ia preferir esse cenário. Contudo, pareceu alimentar-se também de tudo o que mal e anormal se ia passando em Melbourne – e não foi pouco, incluindo o caso do pai que voltou à Austrália largos anos depois mas “perdeu” as meias e a final para não criar mais ruído depois de ter sido apanhado a festejar uma vitória com uma claque da Sérvia que tinha também russos apoiantes de Vladimir Putin e da guerra. A tal parte política que pairou era visível em todos os pormenores, como se viu na resposta após a exibição de sonho na vitória frente a Alex de Minaur onde não esqueceu as críticas do australiano pelo “circo” criado em 2022.

Após posar junto de apoiantes de Putin, pai de Djokovic assiste à semifinal do Open da Austrália “em casa” para evitar “perturbações”

Depois, o próprio Djokovic puxava de forma inconsciente (ou não) pela questão mental, começando o jogo ainda antes de o jogo começar. Por exemplo, na antecâmara do encontro decisivo, o sérvio dizia que não se lembrava de ver o adversário do último passo até à possível história, Stefano Tsitsipas, jogar uma final do Grand Slam quando ambos se tinham defrontado em Roland Garros em 2021 para uma vitória a cinco sets do sérvio depois do 2-0 feito pelo grego a abrir que colocou o favoritismo teórico em risco. “Não se recorda? Eu também não me recordo desse jogo”, respondeu Tsitsipas com a cara mais séria do mundo. A 48 horas da final do Open da Austrália, o encontro tinha começado para apimentar um dia que seria histórico.

Se Novak Djokovic ganhasse ao adversário com quem tinha até aqui um registo de vitórias de 10-2 com nove sucessos consecutivos, não só voltaria à liderança do ranking mundial depois de um ano de 2022 em que foi impedido de jogar na Austrália e no US Open e que ganhou Wimbledon sem os pontos como aumentaria o recorde em Melbourne para dez vitórias e igualaria Rafa Nadal como o jogador com mais Grand Slams na história (22). Se Stefanos Tsitsipas conseguisse bater o seu mentor com quem treinou variadas vezes em Monte Carlos, não só alcançaria o seu primeiro Major aos 24 anos como passaria para número 1 do mundo em vez de Carlos Alcaraz (algo que nunca fizera na carreira). A certa altura, o sérvio ainda se deixou levar pelos nervos; depois, recuperou o equilíbrio, elevou o nível e ganhou de forma natural, juntando ainda mais um recorde de semanas como número 1 de Steffi Graf (vai chegar às 378 contra 377 da alemã) – e está a uma final do Grand Slam de igualar também o recorde máximo da norte-americana Chris Evert (34).

Havia muita curiosidade sobre a versão de Tsitsipas que surgiria na final depois do claro incómodo com esse deslize de Djokovic antes do encontro. Poderia aquele fogo que se viu no olhar perante essa questão ter um prolongamento no court? Estaria o grego, que só enfrentou dificuldades com Jannik Sinner durante estas duas semanas, capaz de colocar o domínio hegemónico do sérvio em risco? A resposta no primeiro set a isso foi muito clara, não. Um rotundo não. E apesar de ter desperdiçado dois break points no jogo de serviço inicial de Tsitsipas, Djokovic quebrou o serviço do helénico para o 3-1 enquanto ia ganhando os seus jogos com relativa facilidade. Sem forçar, apesar de apresentar na final apenas uma ligadura funcional e não uma coxa elástica na perna esquerda (significado de melhoria), fechou em 6-3 sem grandes dificuldades.

Mesmo sendo um dos mais emocionais jogadores do circuito, o sérvio tornava-se na máquina mais racional possível quando chegam estes momentos. Havia exceções, como os dois primeiros sets com Tsitsipas na final de Roland Garros ou o jogo completamente falhado com Daniil Medvedev no US Open também de 2021 quando podia ganhar todos os Grand Slams (entretanto perdera a possibilidade de juntar a isso a medalha de ouro olímpica). Aqui, e em 36 minutos, fechou o set inicial de forma rápida. Poderia o grego responder a isso? Os seus dois primeiros jogos de serviço, mais agressivo no serviço e com menos erros, mostraram uma versão melhor do helénico que equilibrou o encontro e chegou a colocar Goran Ivanisevic a pedir calma ao sérvio. Djokovic começou a sentir a pressão no seu serviço, Tsitsipas elevou o seu jogo e chegou mesmo a ter um set point não aproveitado no serviço do adversário que levaria tudo para o tie break, onde voltou a imperar o equilíbrio em alguns momentos perdido por Djokovic para fechar o parcial com 7-4.

O encontro estava basicamente fechado, sendo preciso recuar mais de uma década para encontrar um jogo em que Djokovic liderasse por 2-0 e perdesse (Jürgen Melzer nos quartos de Roland Garros em 2010). Sem ter algo para soltar a fúria, nem em campo nem das bancadas, ainda foi preciso trocar palavras com o seu camarote para se libertar dos nervos que fizeram tremer a conquista do segundo set perante as melhorias de jogo de Tsitsipas. O Garden Square, mais cheio do que nunca com a comunidade sérvia, festejava como se a vitória no Open da Austrália fosse uma certeza. Ainda apanhou um susto, quando o grego conseguiu o seu primeiro break do jogo, mas a ordem natural foi restabelecida apesar de só ter conseguido fechar o encontro no tie break por 7-5, tendo parado no 11.º jogo para mandar alguém nas bancadas ir dormir sem perder a concentração como noutros momentos. Tsitsipas deu mais luta mas caiu em menos de três horas.

Depois da rábula da deportação da Austrália no início do ano, 2022 foi o ano mais marcante da carreira de Novak Djokovic. Começou por sentir-se quase um corpo estranho em campo com derrotas em Monte Carlo, Belgrado e Madrid, ganhou depois em Roma antes de ser cilindrado por Rafa Nadal nos quartos de Roland Garros, reencontrou-se com o seu jogo a partir daí com vitórias em Wimbledon, Telavive, Astana e no ATP Finals continuando proibido de fazer torneios nos EUA. Foi isso que adiou aquilo que era inevitável. E a demonstração de força que deixou em Melbourne, onde chegou com um visto provisório e um pedido de desculpas por parte das autoridades, mostra que ficará na história como o maior de sempre em títulos.