No final de 2017, o historiador José Barreto deu a conhecer três cartas inéditas do espólio de Fernando Pessoa. As missivas, reproduzidas no n.º 12 da revista Pessoa Plural, sugerem que Madge Anderson, irmã da cunhada do poeta, poderá ter sido a sua “última paixão”, cuja existência tinha sido aventada por investigadores como Ángel Crespo. Barreto concluiu que havia uma carta em falta, mas na altura não a conseguiu localizar. Só muito recentemente é que o historiador foi capaz de a identificar, entre o conjunto de correspondência adquirida em 2020 pela Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) à família do escritor.
Madge Anderson, uma escocesa que trabalhou para os serviços secretos ingleses (SIS) durante a Segunda Guerra Mundial, terá iniciado a correspondência em inglês com Fernando Pessoa no verão de 1935, quando se encontrava ainda casada com o segundo marido, que chefiava a força aérea do SIS. Madge era irmã de Eileen, casada com João Maria Nogueira Rosa, o irmão mais novo de Pessoa, que vivia em Inglaterra. Entre 1929 e 1935, Madge fez “um número indeterminado” de viagens a Portugal.
A comunicação com Pessoa foi interrompida com a súbita morte do escritor, a 30 de novembro de 1935. O poeta não chegou a responder à última carta de Madge, datável de 14 de novembro e recebida por este poucos dias antes de morrer. Essa missiva é uma das três identificadas por Barreto em 2017, juntamente com dois rascunhos de cartas para Madge, que estavam com os familiares do poeta. O mais antigo desses rascunhos terá sido escrito no final do verão de 1935, uma vez que o poeta pede “perdão pela sua descortesia em ter desaparecido quando, em abril-maio desse ano, Madge se encontrava de visita a Portugal e desejosa de se encontrar com ele”, estimou o historiador.
Pelo conteúdo do segundo rascunho e da carta divulgados há seis anos, deduzia-se que a escocesa tinha respondido a Pessoa, mas desconhecia-se o paradeiro da resposta e o que esta dizia. Era, no entanto, possível tirar algumas conclusões. Foi o que Barreto fez: “Nessa carta, descrita por Pessoa na sua resposta como simpaticamente agressiva (‘your kind aggressive letter’), Madge o apodava de velho tonto dramático (‘dramatic old silly’), entre outros reparos. Sobre o sentido geral da carta em falta podia-se conjeturar que Madge não se deixaram impressionar pelas desculpas e lamurias do seu correspondente, acusando-o também do truque de se afundar em depressão (‘sinking trick’) para justificar o seu desaparecimento” durante a sua passagem por Portugal.
A última paixão de Fernando Pessoa não foi Ofélia, foi uma inglesa loira
“Em 2020, três anos depois da publicação de ‘A última paixão de Fernando Pessoa’, a BNP adquiriu aos herdeiros mais de três centenas de documentos do espólio familiar de Fernando Pessoa, incluindo correspondência por ele recebida. Entre esta achava-se a peça em falta do referido conjunto de quatro cartas trocadas em 1935 entre Pessoa e Madge”, explicou o historiador no mais recente número da Pessoa Plural (n.º 22), no qual divulgou a quarta carta. Esta não adianta nada de novo sobre o relacionamento de Madge e Pessoa, mas confirma, pelo seu tom e linguagem, a proximidade entre os dois.
Na sua análise da missiva, Barreto, fazendo referência às “duras” palavras de Madge, que acusou Pessoa de “falta de força de vontade”, constatou que apenas “pessoas afetivamente muito ligadas a Fernando — como a sua mãe, a irmã Teca ou Ofélia Queiroz — se permitiram visar com tal sem-cerimónia os pontos nevrálgicos do seu caráter”.
“A resposta de Pessoa à presente carta, a que ele juntou a oferta do poema ‘D.T.’, reage a algumas das críticas de Madge, aceitando-as com tolerância bem-humorada (…). Todavia, Pessoa não responde — pelo menos diretamente — à censura sobre a sua deplorável falta de força de vontade. Madge não se tinha alargado sobre as causas dessa incapacidade debilitante, por delicadeza ou talvez, por as não conhecer suficientemente. Pessoa é que desenvolve o tema (…) através do extraordinário poema ‘D.T.’”, um poema “alcoólico ou pós-alcoólico” que descreve “sucintamente a encruzilhada psicológica do autor, posto perante a escolha entre o alcoolismo e o amor, optando afinal pelo brandy, embora saiba que lhe matará a alma”, resumiu Barreto em 2017.
Nessa altura, o historiador apontou ao Observador, fazendo referência à elevada quantidade de poemas de amor escritos por Pessoa no final da sua vida, que a paixão do poeta por Madge é apenas uma sugestão. “Não posso provar [que Pessoa estava realmente apaixonado por Madge], nem provavelmente alguém poderá. É uma hipótese que tem base, que tem fundamento e que é preciso considerar.”
A carta de Madge Anderson para Fernando Pessoa, agora divulgada por José Barreto, traduzida para português pelo investigador:
Meu querido Fernando:
A chegada da tua carta foi um grande prazer, mas a sua substância é um tanto angustiante. Sinto que posso compreender a tua atitude, mas ela deixa-me algo exasperada. Algo deveria ser feito contigo, mas não sei por quem, dada essa tua deplorável falta de força de vontade para o fazeres por ti próprio.
Ouve, Fernando – não consegues recompor-te até o John e a Eileen chegarem? Parece que eles estão resolvidos a passar as férias em Portugal e vão sair de Londres dentro de uma semana. Vais tirar muito prazer à visita deles se lhes fizeres o truque de “afundar”!!
Não sei bem o que significa caridade cristã, mas eu tenho de ti uma opinião mais elevada do que a que tu tens de ti próprio … velho tonto dramático que és! E nem sequer tens a desculpa de falta de sentido de humor!
Saúdo-te com a maior ternura. A tua amiga
Madge