O Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) está a lutar para manter na agenda internacional a guerra na Síria, “ultrapassada” pelo conflito desencadeado há quase um ano pela invasão russa da Ucrânia, assumiu hoje o líder da instituição.
Numa entrevista à agência Lusa, em Lisboa, Fadel Abdul Ghany sustentou que a guerra na Ucrânia “é mais importante para a Europa”, por se tratar de um país europeu, mas sublinha que no conflito na Síria – que já dura há quase 12 anos – também são atores a Rússia, o Irão e organizações paramilitares como o Grupo Wagner.
“Na Síria, o Governo [do Presidente Bashar al-Assad] comete crimes, além de ter convidado o Irão e a Rússia para o apoiar. (…) Peço que equilibrem um pouco a pressão e deem à Síria nem que seja apenas 10% da atenção que estão a dar à Ucrânia”, apelou Fadel, apelando sobretudo aos países ocidentais.
Também tal como na Ucrânia, Fadel sublinha o envolvimento no conflito sírio do Grupo Wagner, uma organização paramilitar de origem russa, descrito como uma empresa militar privada, “o que torna a situação ainda pior”, pois apoiam um regime que “é ilegal, governa pela força, semelhante ao da Coreia do Norte” — “A mentalidade de al-Assad é a mesma”.
“Sim, o Grupo Wagner está envolvido (…) é parte das forças russas e estão presentes em várias zonas na Síria, como em Aleppo. O Grupo Wagner tem cometido crimes na Síria e esses crimes estão documentados por nós”, afirmou.
“Penso que as tropas russas invadiram a Ucrânia depois de o fazerem na Síria, porque a falta de condenação internacional e a não imposição de sanções ao envolvimento da Rússia na Síria, encorajou Putin a invadir a Ucrânia”, argumentou Fadel.
“A situação está a piorar. Apesar de parecer que o grau de violência é menor, há a perceção de que as detenções são hoje menos do que em 2021 ou mesmo 2020, ou que os bombardeamentos também pareçam ser menos. Isso não é verdade. Os números (de vítimas) são cada vez maiores e a situação está a deteriorar-se”, frisou.
Segundo o responsável do OSDH, com sede em Oslo, na Noruega, mais de 300.000 pessoas, muitas delas civis, morreram desde o início do conflito, em 2011, e o número de refugiados e deslocados sírios é o maior no mundo, mais de 14 milhões (quase sete milhões, segundo a ONU), “mais do que na Ucrânia e do que na Palestina”.
“Os números são os mais graves do mundo. Os de mortes são dos maiores, os relacionados com tortura são dos maiores, os deslocados são os maiores, mais de metade da população”, acrescentou, lembrando que o país é um dos piores na lista de liberdade de imprensa e que 90% da população vive abaixo do limiar da pobreza.
Para Fadel, enquanto a Síria não obtiver maior atenção da comunidade internacional, sobretudo dos Estados Unidos e da Europa, a guerra “nunca acabará e continuará por muitos anos, tudo a expensas do sofrimento do povo sírio”.
“Penso que a Síria não está na agenda da Administração [norte-americana, de Joe] Biden. (…) Temos sempre procurado puxar os Estados Unidos para um maior envolvimento na Síria e ajudar a evitar as violações do regime, mas…”, afirmou Fadel, que a partir da próxima segunda-feira estará em Washington, onde terá encontros na Casa Branca, no Departamento de Estado e no Pentágono.
Fadel adiantou ter mantido também vários contactos na Europa Ocidental “sempre” para tentar que se encontre uma solução política negociada para o conflito, tendo em conta as resoluções nesse sentido aprovadas no passado pelo Conselho de Segurança da ONU, “cujos esforços de implementação não contam com a vontade política de vários países”.
“Sem apoio, sem vontade política, não vejo o fim do conflito”, prosseguiu, salientando que as divisões no Conselho de Segurança da ONU “também não ajudam”, dando como exemplo o facto de a Rússia já ter recorrido ao veto por 16 vezes, “arbitrariamente”, desde 2011 em questões ligadas à Síria.
“Há crimes contra a humanidade cometidos por al-Assad e aí entram as contradições russas. As leis russas dizem claramente que os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra são mais importantes do que tudo. Mas no Conselho de Segurança há divisões profundas. Na Síria há 14 milhões de deslocados e centenas de milhares de mortes. É disso que estamos a falar”, insistiu Fadel
Para o responsável do OSDH, a comunidade internacional terá, assim, de intervir fora do âmbito do Conselho de Segurança da ONU e no quadro da lei internacional, “para que o sofrimento do povo sírio volte a ser importante, prioritário e esteja na agenda”.
“Mas isso não ajudará a pôr fim ao conflito até que possamos ir ao centro da questão, que é o regime de al-Assad, que parece que nunca deixará o poder, apesar de as pessoas continuarem a morrer e de a situação no terreno continuar a degradar-se. Não vejo al-Assad a deixar o poder, pois recebe milhões de dólares do Irão (cerca de 55.000 milhões de dólares — 50.800 milhões de euros), tem o apoio político e militar da Rússia”, disse.
“A menos que o Ocidente atue, al-Assad vai continuar e as sanções demorarão anos a fazer efeito. Esperam que a situação atinja um ponto de saturação, de cansaço. Só assim poderão sentar-se à mesa das negociações. Mas ninguém dá o primeiro passo e não acredito que isso aconteça nos próximos dois a três anos”, concluiu.
Pelo menos 40 casos de uso de armas químicas na Síria confirmados
Fadel Abdul Ghany destacou o recente relatório feito por investigadores da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPCW, na sigla inglesa), que deram conta de ter encontrado “vestígios suficientes” de que a Força Aérea da Síria usou gás cloro contra a cidade de Duma, em abril de 2018, matando 43 pessoas, constituindo esse apenas um dos 40 casos conhecidos do OSDH.
“Há um mecanismo criado com base nas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas em agosto de 2015, que estabelece o Mecanismo Conjunto entre a ONU e a OPCW, que elaborou vários relatórios e acusou o regime sírio de cometer três ataques com armas químicas”, realçou Fadel.
A OPCW, por seu lado, prosseguiu, criou a Identification and Investigation Team (IIT), que também fez três relatórios em que acusa também o regime sírio de vários ataques com armas químicas, incluindo o de Duma.
“Temos os relatórios internacionais a acusar o regime de al-Assad de pelo menos 40 ataques com armas químicas, que incluem já os que nós contabilizamos. Não temos qualquer dúvida em relação a esses ataques. As equipas de investigação estão muito bem equipadas, com laboratórios, com alta tecnologia. Falta punir os responsáveis”, sublinhou.
No relatório do OPCW, divulgado a 27 de janeiro passado, os investigadores deixaram claro que o regime do Presidente sírio, Bashar al-Assad, lançou dois bidões com gás cloro contra a cidade.
“O uso de armas químicas em Duma, e em outros locais, é inaceitável e vai contra a lei internacional”, disse o diretor-geral da OPCW, Fernando Arrias, sublinhando que Damasco não respondeu às questões colocadas no relatório.
Os especialistas internacionais acreditam que ainda “falta muito” para responsabilizar judicialmente o regime sírio, lembrando que este é um aliado de longa data da Rússia e que Moscovo bloqueou todos os esforços do Conselho de Segurança da ONU para criar um Tribunal Especial para a Investigação de Crimes na Síria.
O OPCW já tinha sinalizado no passado a responsabilidade do regime sírio em três ataques com substâncias químicas em Latamneh, em março de 2017, e um outro em Saraqeb em fevereiro de 2018.
A Síria viu, por isso, suspensos os direitos de voto no quadro do OPCW em 2021, como punição pela utilização repetida de gás tóxico, na primeira sanção deste tipo imposta a um Estado membro do organismo internacional.
Os investigadores que elaboraram o último relatório entrevistaram dezenas de testemunhas e analisaram o sangue e a urina dos sobreviventes, assim como amostras do solo e de materiais de construção da zona de impacto.
Duma foi o último objetivo das forças governamentais durante a campanha de reconquista dos subúrbios de Damasco, ocupados pelos oposicionistas e grupos extremistas islâmicos durante sete anos e que acabou por ser reconquistada após o ataque com gás cloro.
Numa tentativa de assegurar a responsabilização por crimes na Síria, as Nações Unidas estabeleceram o “Mecanismo Internacional, Imparcial e Independente”, mandatado para preservar e analisar as provas de crimes e preparar processos para julgamentos em “tribunais nacionais, regionais ou internacionais que tenham ou possam no futuro ter jurisdição sobre estes crimes, de acordo com o direito internacional”.
O conflito que começou na Síria há mais de uma década matou centenas de milhares de pessoas e provocou uma vaga de deslocados internos e refugiados no país, que antes da guerra, contava com 23 milhões de habitantes.
Silêncio de Portugal “frustra” Observatório
O diretor do Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) manifesta “frustração” pelo “silêncio de Portugal” sobre o conflito na Síria, país que está envolvido numa guerra desde 2011.
Ghany adianta não ter tido nenhum contacto com as autoridades portuguesas, a quem já pediu reuniões, questionando-se por que razão Portugal não fez, nos últimos anos, qualquer comentário sobre a situação dos Direitos Humanos na Síria.
“Portugal é um dos principais países democráticos que defende os direitos humanos, que está na linha da frente na defesa dos direitos humanos. Perguntamo-nos porque é que ainda não fez qualquer comentário, um simples ‘tweet’ sobre a Síria nos últimos anos? Ouvimos preocupações da França e de outros países. Porque é que Portugal não comenta?”, questionou Fadel, antes de viajar, sábado, para os Estados Unidos.
Essa foi uma das mensagens que deixara, sexta-feira, numa reunião da Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias do Parlamento português, em que também acabou por lamentar que apenas três partidos tivessem participado — Partido Socialista (PS, no poder), Partido Social-Democrata (PSD) e Chega –, estranhando a ausência do Bloco de Esquerda (BE), Partido Comunista Português (PCP) e Partido Animais e Natureza (PAN).
“Vim a Portugal para informar o Governo e o Parlamento que a Síria ainda conta e que a violência continua, persistindo os crimes contra a humanidade perpetrados pelo regime de Bashar al-Assad e por outros países”, como a Rússia e o Irão, sublinhou.
Para Fadel, é importante que Portugal perceba que, para os sírios, “é importante ouvir a voz portuguesa” porque isso significa que Portugal “ainda apoia o movimento que luta pela democracia” e para “ajudar a pôr cobro à ditadura [do regime do Presidente Bashar al-Assad]”.
“Não sabemos o que Portugal pensa. Precisamos de uma declaração e que [Lisboa] aproveite todas as oportunidades para manifestar o apoio à democracia síria”, defendeu, insistindo na ideia de não saber por que razão o Governo português não dá passos nesse sentido.
“Se não tiverem informações, nós podemos fornecer-lhes, pois somos a maior organização na Síria. Temos os dados sempre atualizados, temos estatísticas para que possam basear uma declaração oficial sobre a Síria, que tem sido esquecida das declarações do Governo português. Espero que, depois desta visita, o Governo possa rever esta atitude e tome medidas para, pelo menos, comentar os assuntos sírios”, acrescentou.
“Não estamos a pedir muito. Quando acontecem coisas importantes e Portugal não está presente sinto-me triste como ativista dos Direitos Humanos, tanto mais que é um país que sempre defendeu a democracia e os direitos humanos”, referiu, sublinhando que as respostas dadas pelos três partidos que o ouviram na audição “foram positivas”, mas ficando-se apenas pela garantir de que “acompanham a situação”.
Fadel salientou que, na audição, foi-lhe indicado que Portugal, através um programa criado pelo antigo Presidente português Jorge Sampaio, tem apoiado e recebido estudantes sírios, mas que nada mais foi adiantado.
“Atualmente há zero por cento de atenção ao que o Governo sírio está a fazer. No Parlamento, destaquei a ocorrência recente de incidentes importantes e que gostava de ouvir o Governo português comentar, como, por exemplo, o uso, até recente, pelo regime sírio, de armas químicas. Qual foi a reação do Governo português?”, lamentou, lembrando que esta última ação de al-Assad foi documentada pela Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPCW, na sigla inglesa).
Sempre muito crítico, por um lado, e “triste”, por outro, Fadel referiu que muitos países já se pronunciaram, como a França, Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, Suíça, Turquia ou Qatar.
“Porque é que Portugal ainda não se pronunciou? É uma declaração que demora poucos minutos, com poucas linhas, a condenar o regime sírio. Isto significa muito para os sírios, pois demonstra que Portugal se preocupa com o sofrimento do povo sírio, que acompanha a evolução dos acontecimentos, que apoia a causa (dos direitos humanos), que está contra a ditadura (de Damasco) e que está contra o uso de armas químicas”, prosseguiu.
Nesse sentido, pede também às autoridades portuguesas que ajudem a recolocar a Síria na agenda internacional, sobretudo na defesa dos direitos humanos na Síria.
“Em Portugal, nada disso aconteceu. Fiquei frustrado”, concluiu.