Começou em 2018 no Mercado de Santa Clara, que se encheu de ofícios de várias áreas, da produção gráfica à tecelagem. Ao fim de três edições, a Feira Feita foi empurrada pela pandemia para uma plataforma online, para onde transportou o objetivo que a moveu desde o início: ser uma montra experimental para os artesãos de Lisboa. No fim de semana de 18 e 19 de março, o evento regressa em carne e osso com mais bancas, mais espaço e mais workshops, desta vez no Mercado de Arroios.
No sábado de manhã, peças contemporâneas de autor vão conviver com frutas, peixe, frescos do dia dos feirantes habitués de Arroios. “O visitante pode comprar um legume e, ao lado, um vaso de cerâmica“, conta ao Observador Bernardo Gaeiras, um dos fundadores da Feira Feita. SoSo, Henriette Arcelin, Mauvais Marie, Joana Mota Capitão, Serrote, Carolina Celas, Lavandaria, Kroh, Estúdio Bulhufas e Bzuga, para nomear apenas alguns, estarão entre, pelo menos, 60 artesãos já confirmados ao longo dos dois dias, que vão partilhar espaço com vários workshops (cerca de 20), instalados em duas zonas do mercado.
Ao fim de três anos afastados do formato físico, este regresso em ponto grande é também uma celebração. “Quando estávamos no Mercado de Santa Clara, já sentia que podia ser maior. Que aquelas 20 ou 30 bancas se esgotavam rapidamente.” Há cinco anos, Bernardo era responsável pelo laboratório Fab Lab Lisboa, que lançou em 2013, e estava a trabalhar na Câmara Municipal de Lisboa (com a qual ainda colabora enquanto consultor) na área de promoção das indústrias criativas. Um dos seus objetivos passava precisamente por dinamizar o Mercado de Santa Clara e transformá-lo num showroom para várias iniciativas.
Juntou-se a Rita Daniel, fundadora da Fica Oficina Criativa e uniram forças para criar um mercado que servisse como espaço de venda, mas também como uma rede de artesãos autores da cidade de Lisboa. É mercado, é comunidade, é espaço experimental. “É um evento de divulgação que lhes permite apresentar as suas peças ao público, para poderem de alguma forma testar e perceber se funciona, ver se têm uma boa recetividade e, assim, ganharem meios de subsistência para poderem continuar”, acrescenta.
Esse ideal de comunidade já estava presente na cabeça de Rita Daniel em 2016. Depois de passar três anos em Barcelona e outros três em Zurique, chegou a Lisboa e criou a Fica Oficina Criativa, um espaço de oficinas que se dedica à formação e produção de todas as técnicas artísticas e visuais, aberto não só a quem quisesse aprender, mas também fazer. “As oficinas em Lisboa não estavam abertas a todos. Já sentia essa falta quando cá vivia. Em Barcelona e Zurique, usava espaços comunitários para poder criar,” recorda. Foi essa necessidade a que a Fica veio responder, primeiro no LX Factory, a que chamou de casa durante 5 anos e, agora, num espaço na Rua de Arroios, para onde se mudou em 2021.
O que ainda faltava quando ele e ela se uniram para lançar a Feira Feita era um organismo que ligasse a rede de artesãos da zona de Lisboa e lhes permitisse promoverem e divulgarem os seus trabalhos ao vivo, a um público alargado e sem constrangimentos financeiros. A Feira Feita é financiada a 100 por cento pela CML e os artesãos, ao contrário do que acontece noutros formatos, não pagam para participar. “Convidamos muitas vezes pessoas que estão a começar,” comenta Bernardo. “Mesmo que não vendam, não perdem nada. Vá, podem perder tempo (risos), mas ganham sempre algo em estar num local que é dedicado e quase exclusivo a este tipo de projetos.”
É difícil ser-se artesão em Lisboa?
Rita Teles Garcia, à frente do projeto Kroh, é uma dessas artesãs. Esta será a terceira vez que participa na Feira Feita, depois de ter estado no Mercado de Santa Clara e numa edição online durante a pandemia. Que impacto tem esta iniciativa num projeto pequeno? “Uma maior visibilidade, o facto de podermos ganhar público, clientes e dinamizarmos novas parcerias”, enuncia. Vai levar para o mercado uma coleção de cerâmica com detalhes de crochet e tapeçarias bordadas em punchneedle.
A crise não está a ser branda com estes negócios. “Noto uma quebra nas encomendas e um aumento grande nos preços da matérias-primas e materiais com que trabalho”, revela. Ainda não consegue dedicar-se exclusivamente ao projeto, embora possa estar “à beira” de o fazer.
O seu caso não é único. “O preço das matérias primas disparou, bem como a nossa renda e as contas. Isso tem-se refletido no aumento dos nossos preços, mas não podemos dispará-los à mesma velocidade, pelo que temos precisado de repensar o nosso plano de negócios”, explica Letícia Burkardt, da encadernadora Estúdio Bulhufas. O projeto é a sua única fonte de rendimento, mas a outra metade do Bulhufas, Tiago Casanova, mantém outra outra ocupação.
Uma das grandes dificuldades da organização tem sido precisamente encontrar projetos que se dediquem exclusivamente aos seus ofícios — dar-lhes palco é uma prioridade que está nas entranhas da Feira Feita. “Sempre foi o nosso interesse fazer valer que é possível viver dos ofícios. A Feira Feita quer dar lugar a pessoas que querem fazer disto a sua vida”, declara Rita Daniel. “Tentamos selecionar artesãos que já investiram e batalharam para o fazer. Mas não é fácil. Estando no contexto de cidade, obviamente existem custos e responsabilidades que, num meio rural, estariam mais apoiados.”
É difícil ser-se artesão em Lisboa? “Sim, quando falamos de um ofício, de uma técnica feita à mão, de uma produção artesanal, são obviamente coisas que levam o seu tempo. A sociedade portuguesa, em geral, não está educada para dar o valor que é preciso dar a esses produtos e é sempre difícil viver disso.”
“Muita coisa é muito difícil em Lisboa”, considera Bernardo, “especialmente nas áreas criativas, culturais. Os autores sofrem realmente de uma falta de apoios logísticos e financeiros. Os caminhos para a sustentabilidade destes setores não são, de todo, evidentes. Poderia enunciar questões como a própria educação que existe nestas áreas, na escola e na educação superior.”
O problema, acredita, não está só relacionado com a sensibilização para o caminho dos ofícios, mas também com o poder de compra dos portugueses. “É uma causa sistémica, neste caso. O setor dos artesãos acaba muitas vezes por estar quase cingido a um mercado de luxo, mas isso tem mais a ver com a falta de capacidade económica que temos na nossa sociedade.”
Foi por isso que, para conseguirem encher o espaço consideravelmente maior do Mercado de Arroios, alargaram a malha de participantes do concelho de Lisboa, ao qual se cingiu nas edições passadas, à área metropolitana de Lisboa. No Mercado de Santa Clara, eram cerca de 25 bancas — “e não foi fácil encontrá-las”, admite Rita. “Nós vamos ao pormenor de perceber se é realmente aquela pessoa que está a fazer aquele produto e se o faz aqui, na cidade. Só convidamos marcas ou artesãos-autores cuja produção é 80 a 90 por cento própria e em Lisboa.”
Felizmente, há mesmo quem viva exclusivamente do seu ofício. Joana Mota Capitão vai estrear-se na Feira Feita em março e dedica-se à joalharia desde de 2012. “O início não foi fácil”, explica, mas o passa-palavra ajudou-a a ganhar o seu espaço no mercado. “Apesar de tudo, tem corrido bem. Tenho tido cada vez mais procura para peças personalizadas.” Entre 18 e 19 de março, vai apresentar todas as coleções no Mercado de Arroios, desde a mais recente, AFECTO, às mais antigas.
Em Arroios já estão confirmados 60 participantes, mas há espaço para mais, já que o mercado tem cerca de 150 bancas disponíveis. “A nossa principal preocupação é conseguirmos que o espaço fique meio cheio e não meio vazio. Não existem ainda participantes suficientes nesta primeira edição para preencher todas as bancas”, adianta Bernardo.
Uma feira de artesãos e não de artesanato
O nome que foi imaginado por ele é quase um trocadilho. Nas palavras Feira Feita, muda só uma letra, mas o significado tem sobretudo que ver com essa capacidade dos artesãos que lá estão de fazerem as suas próprias peças. Aliás, o próprio mercado é feito pelos organizadores. Eles gostam, explica, de imprimir as bandeiras, criar toda a sinalética. Estão profundamente entrosados com o ecossistema que criaram e até com as histórias de alguns projetos, como é o caso da I’m Not Messy I’m Creative, uma das artesãs repetentes.
“Fui das primeiras pessoas a comprar-lhe uma peça de cerâmica, na primeira Feira Feita”, recorda. “Na altura, foi muito mais barata do que seria hoje em dia, porque ela ainda estava a experimentar e a perceber como era. O mercado dá-lhes esse espaço para experimentarem e, depois, verem o crescimento dos seus projetos ao longo do tempo.”
É um dos casos de sucesso que a iniciativa testemunhou, mas há outros, como o da Estúdio Bulhufas, a participar pela segunda vez na Feira Feita. Na primeira participação, recorda Letícia, estavam a começar e dependiam muito da venda dos cadernos. “Agora estamos numa fase onde a nossa maior fonte de rendimentos vem de encomendas personalizadas, e os cadernos são um complemento.”
“Estes objetos conseguem contar histórias muito mais diretamente a um consumidor do que as lojas ou sítios online onde os autores não estão presentes”, acredita Bernardo. “Tentamos que a Feira Feita não seja de artesanatos. Nada contra, mas existem feiras de artesanato e isto é diferente. O artesanato preocupa-se muitas vezes com as técnicas e não tanto com o valor simbólico das peças. É isso que pode ser diferenciador aqui, esta contemporaneidade e originalidade, o valor simbólico inerente à criatividade”
Lisboa tem mais autores, mais oficinas — e mais estrangeiros
Em 2013, Bernardo Gaeiras criou o Fab Lab Lisboa, um laboratório de fabricação digital e prototipagem a funcionar no Mercado do Forno de Tijolo. “Aquilo que vimos foi que esse espaço deu um grande boost à capacidade da população para começar a materializar os seus projetos criativos, para que não ficassem apenas no campo das ideias.”
Fab Lab Lisboa e Fica Oficina Criativa ajudaram a construir uma comunidade que, até então, estava fragmentada na cidade. “O que temos vindo a presenciar é que, ao longo dos últimos anos, têm surgido não só mais autores, mas também mais espaços que permitem fazer.” Espaços dedicados à cerâmica, workshops, oficinas de madeira, modelos de negócio que são em comunidade, que permitem que exista uma rede de entreajuda que liga criadores a plataformas de apoio. “Isso tem sido muito importante para a cidade. É importante que exista esta proliferação de projetos criativos.”
“Há realmente mais interesse pelas artes manuais, pelos ofícios em geral, pelo saber fazer. Isso sem dúvida cresceu nos últimos anos”, confirma Rita.
Há mais bancas este ano e também mais participantes estrangeiros a viver em Lisboa, como o ilustrador britânico Tom Maryniak, a ceramista francesa Cécile Mestelan e a ceramista e ilustradora neerlandesa Kiki Voortman. Esta incidência de autores internacionais na cidade pode andar de mãos dadas com uma maior capacidade de investimento, mas Bernardo sublinha que, para já, esta ideia não é mais do que uma conjetura. Uma coisa é certa: “Contribuem bastante para a criação do ecossistema dos ofícios e do saber-fazer em Lisboa.”
Cerâmica, cestaria, tecelagem… Os workshops da Feira Feita
Um maior espaço para preencher traz outras dificuldades. O Mercado de Arroios tem quatro portas e nem todas as bancas têm uma localização favorável. Ainda assim, há área mais que suficiente para apresentar confortavelmente várias categorias de ofício, cerâmica, têxtil, cestaria, produção gráfica, encadernação e tecelagem, e também uma série de workshops que irão decorrer ao longo dos dois dias.
A organização propôs a ideia aos próprios participantes. “Sabemos que, para muitos autores, a realização de workshops é o seu meio de subsistência.” Vão ser cerca de 20 aulas, inseridas nos ofícios acima mencionados, embora o número final ainda não esteja definido. E preços? Serão “bastante acessíveis”, adianta o responsável. Deverão decorrer num espaço de tempo até cerca de uma hora e meia e, durante as manhãs, haverá sessões dedicadas aos miúdos.
Em 2019, naquela que acabou por ser a última edição da iniciativa, cerca de seis mil pessoas passaram pelo Mercado de Santa Clara, muitos deles iam à Feira da Ladra e acabavam na Feira Feita. No domingo, voltavam de propósito. O objetivo que ali os encaminhou no início de tudo, de dinamizar o mercado histórico, ficou cumprido. Agora, Bernardo e Rita acreditam que Arroios pode ser um novo capítulo para uma história que foi interrompida pela pandemia. “Se tudo correr bem, pode haver próxima edição”, antecipa ele. Quem sabe no Natal.