O economista Ricardo Paes Mamede considera que, “nem que todo o dinheiro” do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) fosse alocado à habitação, isso “resolveria os problemas” existentes em Portugal, reconhecendo porém respostas no plano aos “desafios estruturais”. Em entrevista à agência Lusa, em Lisboa, o professor universitário não está preocupado com os atrasos na execução, embora frise a necessidade de acompanhamento e diz que o PRR é uma forma de a União Europeia compensar o baixo investimento público de mais de uma década.

“Nunca o PRR nesta área conseguiria — nem que todo o dinheiro do PRR fosse dedicado à habitação — resolver os problemas de habitação em Portugal, porque o dinheiro que o PRR tem [previsto] não serviria para Portugal atingir sequer um terço daquilo que é a proporção de habitação social que existe em alguns países do norte da Europa”, afirma Ricardo Paes Mamede.

Numa altura em que Portugal já recebeu cerca de 5,14 mil milhões de euros de Bruxelas para implementar o PRR, o especialista em políticas públicas assinala que o plano “prevê medidas bastante diferentes no que respeita ao apoio à habitação e parte das medidas têm a ver com o primeiro direito, o principal instrumento de política que o Governo tem […] de habitação pública”, havendo ainda outra “parte de residência estudantil”.

“Portugal tem uma das taxas de habitação pública mais baixas de toda a Europa e nós vamos demorar muito tempo a resolver os problemas da habitação, [que] são complexos”, sublinha.

Ainda assim, o professor universitário reconhece que “o PRR dá o sinal certo”, ao mobilizar 2,7 mil milhões de euros para habitação e alojamento estudantil, já que “praticamente não existia política pública de habitação em Portugal” e que o país “tem uma capacidade de responder às necessidades de residência de estudantes deslocados que é verdadeiramente miserável”. “Agora, nós não podemos esperar que o PRR por si só vá resolver estes problemas”, insiste.

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Para Ricardo Paes Mamede, é “fundamental que Portugal aproveite todas as oportunidades que tem à sua disposição para ultrapassar os seus défices nas várias áreas da economia e da sociedade e do ambiente”.

“É fundamental que isso aconteça e se a pergunta é se o PRR dá resposta aos grandes desafios estruturais da economia portuguesa, […] a minha resposta é globalmente sim”, pois o plano “permite concretizar uma série de investimentos que há muitos anos muitos governos de diferentes cores defendem que devem ser feitos”, sustenta o economista, nesta entrevista à Lusa.

Vincando ser “difícil encontrar uma componente do PRR [sobre a qual] não haja um grande consenso na sociedade portuguesa relativamente à importância crucial desse investimento”, Ricardo Paes Mamede considera ainda que o PRR tem “as condições necessárias” para “mudar estruturalmente a economia e a sociedade portuguesa”, mas para isso tem de se “garantir que esse dinheiro vai ser bem utilizado”.

No que toca à capitalização e inovação empresarial, o plano prevê perto de 2,9 mil milhões de euros para ajudas às empresas, estabelecendo-se “uma lógica de que os apoios são […] a iniciativas colaborativas com objetivos específicos de avanço”, em vez de apoios individuais, assinala Ricardo Paes Mamede.

Contudo, o especialista alerta para “o facto de se ter tido uma boa ideia no papel não significa que a sua implementação vai funcionar”.

Portugal é atualmente o sexto país da União Europeia com mais verbas arrecadadas para o PRR, cerca de 5,14 mil milhões de euros (4,07 mil milhões de euros em subvenções e 1,07 mil milhões de euros em empréstimos), sendo o quarto com maior execução pela taxa de 17%, segundo os dados mais recentes da Comissão Europeia sobre a implementação dos planos ao nível europeu.

Uma vez que os desembolsos são feitos com base no cumprimento, Portugal já atingiu 52 metas e seis objetivos pelos 35 investimentos e 23 reformas realizadas de um total de 284 investimentos e 57 reformas acordadas com Bruxelas, o que lhe permitiu receber 31% dos fundos.

“Os atrasos não são preocupantes, mas têm de ser acompanhados”

O economista considera que existe um atraso de execução do PRR face ao que estava planeado, mas que isso neste momento não é preocupante. “Face ao padrão de utilização dos fundos europeus em Portugal, a resposta é claramente não”, disse Paes Mamede. “Não considero que [os atrasos] sejam preocupantes, mas eles necessitam de ser acompanhados”, afirmou.

Para o especialista em políticas públicas, a norma de execução de fundos europeus em Portugal é fraca nos primeiros anos, acelerando o ritmo nos anos finais. “Portugal sempre teve indicadores ótimos no que respeita à execução (…), nunca perdeu dinheiro com os fundos europeus — o que não se pode dizer da generalidade dos países — de facto, tem uma máquina muitíssimo oleada” no que respeita à sua utilização, disse Paes Mamede.

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Por outro lado, ao contrário do que acontece com os fundos estruturais, cuja lógica é a do pagamento contra reembolso, no PRR, os pagamentos aos Estados-membros são feitos, não em função da despesa, mas do cumprimento de metas relacionadas com reformas que os Estados se propõem fazer de acordo com o Plano, segundo explicou.

“Muitas vezes essas reformas nem sequer estão relacionadas com as despesas que vão ser realizadas, podem ser reformas que têm a ver, por exemplo, com um plano nacional de combate a um problema qualquer (…) que não têm nenhum investimento associado”, concretizou.

Já os pagamentos aos intermediários, intermédios ou finais — explicou — decorrem de um regulamento. “Tem de haver despesas realizadas, essas despesas têm que ser certificadas pelas autoridades relevantes e, portanto, é isso que explica o grande diferencial de valores”, disse.

“Olhando para o diferencial entre o que Portugal recebeu e o que os beneficiários finais receberam (…) por si só não nos diz nada sobre os atrasos”, o que não significa que não existe um atraso, realçou.

Algumas das preocupações advêm precisamente do eventual atraso do recebimento dos fundos por parte dos beneficiários finais do PRR, o que, para Paes Mamede, pode dever-se a problemas por parte dos destinatários, ou do Estado.

Segundo os dados disponíveis, os beneficiários finais receberam até agora um total de 1.474 milhões de euros até 08 de fevereiro, quando o Estado já recebeu 5,4 mil milhões em igual período de tempo. Todavia, explicou o economista, “os destinatários finais não estão na mesma posição que o Estado português está em relação à Comissão Europeia”.

Portugal recebe em função das reformas que efetuou, ou das metas que cumpriu, ao passo que os destinatários finais são reembolsados em função das despesas. Para o professor, a fim de se encontrar uma resposta, deve averiguar-se se os destinatários tinham ou não projetos aprovados, se os levaram ou não para o terreno, e por que razão, se os reformularam, anularam, ou mesmo desistiram.

Ou se, pelo contrário — adiantou –, se isso não aconteceu por excesso de burocracia ou ausência de contratualização dos projetos — causas que podem ser atribuídas ao Estado, no seu entender.

O especialista  também considera que um dos problemas graves que se pode colocar é o prazo demasiado longo entre o surgimento das candidaturas e a demora na avaliação dos projetos.“Não me admiraria que este fosse um problema importante na fase atual”, disse.

Segundo o também dirigente do Instituto para as Políticas Públicas e Sociais do ISCTE, a administração pública vive neste momento um período “extremamente exigente no mundo dos fundos”.

“O ‘Portugal 2020’ só vai acabar em 2023, já começou o ‘Portugal 2030’, que supostamente deveria ter começado em 2021, mas está neste momento a lançar os primeiros concursos e, sobre isto tudo, numa mudança de transição de ciclos de fundos estruturais, colocou-se um PRR”.

Esta é a razão segundo a qual o professor não se surpreenderia “se houvesse dificuldade de resposta por parte da administração neste ponto de vista”.

Plano é tentativa da UE para compensar falta de investimento público

Por outro lado, considera que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é “uma tentativa” de a União Europeia (UE) “compensar baixos níveis de investimento público”, necessidade que a seu ver está “consensualizada na sociedade portuguesa”.

“Na verdade, o PRR não pode ser visto como outra coisa senão a tentativa de a União Europeia compensar […] a pressão que houve sobre os países na última década, do ponto de vista orçamental, que teve como consequência precisamente baixos níveis de investimento público”, salienta Ricardo Paes Mamede, em entrevista à agência Lusa, em Lisboa, numa altura em que Portugal já recebeu cerca de 5,14 mil milhões de euros de Bruxelas para implementar o plano.

“Quando é preciso cortar em alguma coisa é no investimento que se corta”, acrescenta o especialista em políticas públicas, aludindo às apertadas regras orçamentais de Bruxelas.

Para Ricardo Paes Mamede, “Portugal teve, durante quase uma década, níveis historicamente baixos de investimento público, o que significa que há investimentos […] que o país já deveria ter feito e que não foram feitos”.

Por essa razão, o Mecanismo de Recuperação e Resiliência, que entrou em vigor na UE em fevereiro de 2021 para mitigar o impacto económico e social da Covid-19, foi “desenhado para responder à pandemia”, mas também permite “dar dinheiro para que o Estado português faça investimentos públicos que já há muitos anos se sabia que tinham de ser feitos nas várias áreas”, assinala.

Em causa estão investimentos nas áreas da saúde, habitação, educação, transportes, entre outras, “cuja necessidade já tinha sido consensualizada na sociedade portuguesa”, de acordo com Ricardo Paes Mamede.

“Não vimos discussão nenhuma sobre isto e a meu ver não vimos porque, em larga medida, os investimentos que estão inscritos no PRR são investimentos que já foram muito consensualizados, não são investimentos que se considere que sejam supérfluos em Portugal”, acrescenta o economista.

Ricardo Paes Mamede vinca que, no PRR, como à semelhança de outros quadros comunitários, “os países preocupam-se muito mais com a quantidade de dinheiro que gastam do que propriamente com a qualidade da despesa que realizam”.

Ainda assim, o responsável rejeita que “caiba à Comissão Europeia verificar se o que está a ser feito está a ser bem feito ou não”, sublinhando que “os Estados nacionais não precisam de pedir autorização à Comissão Europeia para serem bem governados”.

Questionado sobre o desempenho de Portugal face aos 26 restantes Estados-membros, o professor universitário fala em “mais flexibilidade dos fundos do que acontece noutros países”, lembrando que as “instituições europeias delegam nas autoridades nacionais níveis de escrutínio que noutros países são mantidos ao nível europeu”, um regime especial para prestação de contas.

O PRR português tem uma dotação total de 16,6 mil milhões de euros, 13,9 mil milhões de euros de subvenções e 2,7 mil milhões de empréstimos.