O Presidente entrou sem condescendência com o Governo na entrevista à RTP e ao Público desta quinta-feira: chamou “requentada” e “cansada” à maioria de António Costa, acusou-o de andar a “gerir o dia-a-dia” e isto logo nos primeiros três minutos. Prosseguiu sem cerimónias com as medidas da habitação (onde já batizou um segundo “melão”), a pedir um acordo com os professores e saiu sem prescindir do poder de dissolução da Assembleia da República, ainda que coloque a sua utilização apenas no cenário de acontecerem “coisas do outro mundo”.

O que quer isto dizer? Em princípio, Marcelo deixa à distância o recurso à bomba atómica que admite que possa surgir “se sentir que há alguma coisa patológica, excecional, do normal funcionamento das instituições, que ganhe uma tal dimensão que paralise a existência do Orçamento, torne impossível a governação”. A insuficiente execução do Plano de Recuperação e Resiliência no final deste ano é um do itens que coloca na lista de “patologias” que podem desencadear esse cenário.

“Com um panorama desgraçado do ponto de vista da execução do PRR, desgraçado da situação económica e social do país, haver conjunto de circunstância, então teria de repensar realidade. Mas não acredito que haja razões para isso”, disse na entrevista que deu a noite passada.

“Não há alternativa política”

Há ainda uma questão adicional, para lá das “patológicas”, puramente política. Marcelo considera que ainda não existe “uma alternativa política”. Quando confrontado com sondagens de crescimento da direita, o Presidente da República adverte que “há [alternativa] aritmeticamente, mas não há politicamente.” E isto porque a direita não se entende, com o Chefe de Estado a apontar a recusa da IL em entender-se com o Chega: “Não se somam os votos em termos de coligação ou de convergência”.

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Quanto à liderança dessa alternativa, Marcelo não tem dúvidas que terá de ser do PSD. “Uma alternativa para ser forte tem de ter um partido liderante de um hemisfério, que seja mais forte do que os outros, claramente mais forte. O PS, mesmo com aquelas formas originais dos dois governos anteriores, era muito mais forte dos que os demais. O PSD tinha três ou quatro vezes a dimensão do CDS”, referiu mesmo sobre a era de Passos Coelho à frente dos sociais-democratas. Uma realidade que Luís Montenegro não alcançou.

Além disso, Marcelo não sente na rua “um clima de contestação generalizada”. Mas sublinhou que é preciso tirar as teimas ao desemprego — subiu no último trimestre de 2022 e o Presidente quer ter a certeza que não se tratou de uma situação pontual. É isso, acredita, que vai condicionar o grau de contestação.

E na economia não está sereno, descrevendo-se como o pessimista (em comparação com o primeiro-ministro). Diz que vê o “copo meio vazio” e que se estiver mesmo assim, então “tem de se fazer mais do ponto de vista social”, ou seja, tomar mais medidas de apoio às famílias.

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Quanto à questão dos professores e ao novo impasse em que estão as negociações com o Governo (e à ameaça de mais greves), o Presidente distribuiu responsabilidades.

Avisa que o prolongamento das greves pode criar “situações discriminatórias” entre alunos (entre os que tiveram aulas e os que não tiveram, os que têm avaliação e os que não têm, devido às paralisações) e a que os professores percam o apoio popular. E defende que as “novas formas de luta” devem ter um enquadramento legal, para responder às greves a meio do horário e outras formas de paralisar escolas sem que os professores percam a remuneração do dia.

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Mas o Governo também ouviu que “é tempo de continuar a negociar” e que os protestos dos professores “são justos”. E ouviu mais: o Presidente suscita uma solução “faseada” para a recuperação da totalidade do tempo congelado aos professores (os seis anos, seis meses e 23 dias). Deixou pelo menos essa pergunta no ar durante a entrevista e depois de admitir como difícil a “recuperação integral neste momento”: “Porque não fasear a recuperação?”

Conciliar os “dois melões” da habitação

A exigência sobre o Governo foi uma marca que o Presidente quis deixar na entrevista, chegando mesmo a assumir essa preocupação, não fosse passar despercebida: “Hoje até estou a pôr muito pouco a mão por baixo.” Tinha acabado de falar das medidas que António Costa apresentou para a habitação e do curto espaço de tempo dado para a discussão pública — “é do outro mundo”, comentou.

Também falou do perigo de algumas leis esbarrarem na sua aplicação, colocou dúvidas no arrendamento coercivo, convencido de que pode “começar mal”, e pediu “clarificação de conceitos”, como por exemplo o dos “baixos consumos” para fazer prova de que uma habitação está vazia. Mas aqui juntou à dança o PSD e o pacote alternativo de medidas, apontando também fragilidades, nomeadamente sobre quem afinal vai detetar património do Estado devoluto, temendo “uma estatização” vinda da proposta social-democrata.

“O melão do Governo já está aberto. O do PSD ainda não tem diplomas”, resumiu Marcelo sobre as medidas de ambos os lados, aproveitando a imagem que usou, na altura, para travar considerações sobre o pacote legislativo que o Governo quando tinha acabado de ser apresentado. De qualquer forma, o caminho é o entendimento entre os dois, determina o Presidente, que prometeu analisar o que os dois lados propõem e ver  “o consenso que é possível fazer.”

Medina não tem de sair, mas também não tem mais vidas

Na análise ao caso TAP, Marcelo fez questão de mostrar “surpresa” com o relatório da Inspeção Geral de Finanças que entendeu ser ilegal o processo de saída de Alexandra Reis da administração da companhia há um ano, nomeadamente a atribuição da volumosa indemnização — que terá de devolver.  “Foi uma forma juridicamente abstrusa”, concluiu sobre o caso.

Quanto a consequências políticas, fechou a via aberta para Medina mas sem antes colocar um peso extra sobre este mesmo ministro. Se admite que Fernando Medina “não sabia da novela” quando nomeou uma ex-gestora indemnizada pela TAP para a NAV e depois para o seu Ministério, como Secretária de Estado do Tesouro, também faz ver que não podem existir mais surpresas deste ministro.

Coloca-o como “o mais importante do Governo a seguir ao primeiro-ministro” e deixou-lhe um recado a partir do ecrã televisivo: “Vai haver com certeza uma concentração de foco sobre o ministro das Finanças, que é o mais importante do Governo neste momento. E ele, como os outros ministros, tem de olhar para trás e ver ponto por ponto ao longo das suas intervenções tudo o que foi o passado para ver se não há nada suscetível de causar problemas.”

A “desilusão” com os bispos

A entrevista terminou com um tema sensível para o Presidente que é também um católico assumido, que foi confrontado com as posições mais recentes da Igreja — nomeadamente da conferência episcopal — sobre o relatório da comissão independente aos abusos sexuais naquele meio.

Primeiro ponto defendido por Marcelo: “É óbvio” que os padres suspeitos têm de ser suspensos de funções. Segundo ponto: “Foi uma desilusão a posição da conferência episcopal”. “Ficou aquém no tempo, demorou vinte dias a reagir, ficou aquém ao não assumir responsabilidade, o que é o mais grave”, disse o Presidente da República que confessou, quando lhe tocaram na sua fé, que “se falasse como católico seria mais contundente ainda” sobre o assunto.