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Aos 60 anos, Michelle Yeoh tornou-se na primeira mulher asiática a receber uma indicação e a vencer o Óscar de Melhor Atriz pelo papel de Evelyn Wang, no filme “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”, da dupla de realizadores Daniel Kwan e Daniel Scheinert (uma das sete estaturetas conquistadas). Um feito considerável para quem iniciou percurso há cerca de quatro décadas e que nos últimos anos tinha estado mais distante dos principais holofotes. Perante a notícia da nomeação, a atriz disse ao The Hollywood Reporter, que esta distinção ia muito além de si mesma. “No momento atual, e de forma constante, tenho asiáticos que chegam a mim e dizem: ‘Podes fazer isso, estás a fazer isso por nós’. Entendo totalmente. Durante muito tempo, eles não foram reconhecidos, nem ouvidos”.

Está, certamente, a viver o momento mais alto da sua carreira. A renomeada atriz malaia-chinesa tornou-se conhecida internacionalmente, em 1997, como bond girl em “007 – O Amanhã Nunca Morre” e pelo papel de exímia lutadora em “O Tigre e o Dragão” (2000), de Ang Lee. Mas a sua carreira há muito que tinha começado, quando em ainda em Hong Kong, surgiu como nome destacado dos muitos filmes de ação asiáticos em que participou, realizados nessa época dourada do cinema chinês, durante a década de 1980. O Óscar – já depois de ter ganho o Globo de Ouro na categoria de Melhor Atriz em Cinema — Comédia ou Musical, bem como o prémio homónimo no Critics’ Choice e nos Independent Spirit award – é a cereja em cima do bolo. E muito embora não seja exatamente o relançar de uma carreira, que nunca parou, este é porventura um momento auspicioso para a atriz que faz também parte da saga “Avatar”, de James Cameron.

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Qual a história de quem rompeu mais uma barreira entre o cinema asiático a indústria norte-americana? Que se evidenciou como atriz em papéis de ação, sem precisar de duplos? Que tem colocado holofotes nos atores e atrizes de origem asiática, pelos seus papéis em produção de grandes orçamentos, como “Crazy Rich Asians” (2018) e “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” (2021), colocando-o no topo da lista de atrizes asiáticas mais bem pagas da indústria audiovisual?

Do ballet para o palco

Michelle Yeoh nasceu na Malásia, a 6 de agosto de 1962, no seio de uma família de etnia chinesa e desde cedo mostrou interesse pelas atividades desportivas, com talento para a dança, que começou a praticar com 4 anos de idade. Aos 15 mudou-se com a família para Inglaterra, onde se matriculou na London Royal Academy of Dance. Mas uma contusão na espinha dorsal impediu-a de prosseguir o sonho de se tornar numa bailarina clássica, ainda que a dança não tenho deixado de fazer parte do seu ADN. Yeoh passou a ensinar e a coreografar, envolvendo-se noutras artes ligadas à performatividade.

No princípio da década de 1980, regressou para junto da família na Malásia. Com pouco mais de 20 anos, participou em concursos de beleza e foi eleita Miss Malásia, chegando a participar no concurso de Miss Mundo. Foi, no entanto, através da televisão, durante a realização de um anúncio publicitário, que conheceu outro astro em ascensão do cinema chinês, Jackie Chan. A boa impressão que causou valeu-lhe os primeiros convites por parte de produtores cinematográficos de Hong Kong para continuar a carreira no cinema. Aos 28 anos, Yeoh casou com um magnata de Hong Kong, Sir Dickson Poon, o que por um momento parecia afastá-la da sua carreira na indústria cinematográfica. O casal, cujo casamento durou três anos, conheceu-se na rodagem de “Yes, Madam” (1985), onde Yeoh interpretou o papel principal e onde Poon foi produtor.

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Numa entrevista recente à Bustle, a atriz refletiu sobre esse momento, explicando que se afastou do cinema não pela pressão familiar, mas sim pela forma como as mulheres na indústria cinematográfica eram vistas no continente asiático. “Na Ásia isso acontece. As mulheres devem ser donas de casa casadas ou mães o mais rápido possível e não trabalhar. Mas naquela época, a escolha de sair foi só minha, porque nunca fui boa a desempenhar muitas tarefas ao mesmo tempo.” A verdade é que mesmo nesse período, o seu nome já era reconhecido. Embora não tivesse conhecimento sobre artes marciais, Yeoh recorria à sua experiência no domínio da dança e, geralmente, dispensava a utilização de duplos nas cenas de ação mais perigosas de executar. Impressionava pelos seus desempenhos, com nuances dramáticas que pareciam aspirar a outro tipo de oportunidades.

Perante a fama granjeada nos filmes de ação asiáticos, recebeu então o convite de Hollywood para entrar na saga do mais famoso espião britânico, James Bond, como a sua bond girl. Num papel destemido, de uma agente secreta chinesa e perita em artes marciais, a sua performance em 007 – O Amanhã Nunca Morre, ao lado de Pierce Brosnan, valeu-lhe uma carreira nos Estados Unidos, que não mais iria terminar. Com o sucesso do filme de James Bond e de outro filme com sua participação, “O Tigre e o Dragão”, filmado em Taiwan com atores chineses, sucesso de bilheteiras nos Estados Unidos e vencedor do Óscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira em 2000, Michelle Yeoh virou uma celebridade mundial.

Dos sucessos no cinema à sua chegada ao pequeno ecrã

Embora o princípio dos anos 2000 tenha sido marcados por diversas megaproduções, a atriz malaia não deixou de participar em filmes chineses ou pequenos filmes independentes americanos. O mais conhecido e premiado deles foi “Memórias de uma Gueixa” (2005), em que divide as atenções principais com a chinesa Zhang Ziyi, com quem contracenara em “O Tigre e o Dragão”. Participa igualmente no filme de ação “A Múmia: Tumba do Imperador Dragão” (2008) com Brendan Fraser e o ator chinês Jet Li, e deu voz à personagem Fala Macia, no sucesso de animação “O Panda do Kung Fu 2”, da Dreamworks. Nesse período, a atriz foi colocada na lista negra do governo birmanês, na sequência da sua participação em “The Lady”, filme de Luc Besson, com Yeoh no papel principal, onde se retrata a vida de Aung San Suu Kyi, Nobel da Paz, que passou praticamente duas décadas presa pela junta militar que governa o país. Yeoh foi impedida de entrar em Mianmar a 22 de junho de 2011 e foi deportada no mesmo dia.

Mais recentemente, em 2015, começou a expandir a carreira na televisão, com um primeiro papel, interpretando Mei Foster, esposa do embaixador britânico na Tailândia, que é secretamente um espião norte-coreano chamado Li-Na, na quinta temporada da série Strike Back. No ano seguinte, Yeoh foi escalada como Capitã da Federação Philippa Georgiou da nave USS Shenzhou na série Star Trek: Discovery. Mas foi em 2018, quando interpretou a matriarca da família Eleanor Young em Crazy Rich Asians, de Jon M. Chu, uma adaptação cinematográfica do livro homónimo de Kevin Kwan, ao lado de Constance Wu e Henry Golding, que voltou a ser amplamente destacada.

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A partilhar a sua vida com Jean Todt, o ex-presidente da Fédération Internationale de l’Automobile (que supervisiona as corridas de Fórmula 1), desde 2004, a atriz que nunca se abriu sobre a impossibilidade de ter filhos biológicos, compartilhou a sua experiência com a fertilização in vitro durante uma entrevista para a You Magazine. “Infelizmente, não consegui. Tentei fertilização in vitro, tudo. Estava desesperada. Amo crianças e vejo-me cercada por elas. Mas há um limite para o qual colocamos o corpo e a mente. Chega-se a um momento em que temos de aceitar, seguir em frente e lidar com as repercussões”, salientou.

Conhecida por ser entusiasta de aventura e de viagens, de ser praticante de budismo e trilingue – fala inglês, malaio e cantonês –, um dos factos mais curiosos do seu percurso é que pouco antes do papel pelo qual venceu o Óscar de Melhor Atriz, foi aconselhada por muitas pessoas para se reformar antes de aceitar o papel como protagonista de “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”, que lidera a corrida aos Óscares com 11 nomeações. “Conforme se envelhece, os papéis ficam mais pequenos. Parece que os números sobem e estas coisas encolhem e depois começa-se a ser relegado cada vez mais para as margens”, contou num episódio do “podcast” The Envelope, do jornal Los Angeles Times.

No filme, onde contracena com Ke Huy Quan, que venceu o Óscar de Melhor Ator Secundário, Yeoh interpreta o papel de uma imigrante chinesa nos EUA arrastada para uma aventura épica na qual só ela pode salvar o mundo, passando por vários universos paralelos e explorar todas as vidas que não chegou a viver. “Quando chegou o ‘Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo’ foi muito emocional porque isto significa que és tu que estás a liderar todo este processo, quem está a contar a história. É sobre uma mulher normal que se torna uma super-heroína. É sobre ser engraçada, dramática, fazer artes marciais; quase tipo como um filme de terror. Foi como ter cinco géneros transformados em um”, notou.

Nesta edição dos Óscares foi notório o reconhecimento do lugar dos atores asiáticos. Além de Michelle Yeoh e de Ke Huy Quan, também Stephanie Hsu estava nomeada, outras das atrizes do elenco de “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”, tal como Hong Chau, pelo seu desempenho no filme “A Baleia”, de Darren Aronofsky. Para Yeoh, que de alguma forma abriu caminho a muitos destes nomes, o momento é de renovado caminho – afinal, foram precisos 95 edições para que a Academia nomeasse e premiasse uma atriz asiática nesta categoria.