É difícil escrever sobre os ensaios de Jorge de Sena. Não que tenha uma obra demasiado longa ou excessivamente complexa, mas o seu génio é de tal maneira irrequieto que é praticamente impossível escrever com um mínimo de unidade sobre a sua obra. Em cada texto se veem dezenas de intuições prometedoras, os mais variados autores pretextam tipos de análise diferentes, de tal modo que se torna difícil afirmar que há um pensamento em Jorge de Sena. Há milhares de pensamentos, ou melhor, promessas de pensamento, porque na maior parte das vezes aquilo que temos são sugestões que o próprio autor não chega a seguir, perdido entre o seu vastíssimo naipe de hipóteses.
Nalguns ensaios mais extensos – como veremos no caso de vários dos seus estudos camonianos – torna-se evidente que Sena não tem os meios para cumprir a originalidade dos seus propósitos; noutros casos, porém, a capacidade de Sena navegar com clareza entre as várias ciências sociais, de saber aproveitar bocados das teorias mais diversas e de montá-las num encontro entre as tradições mais diversas resulta em páginas extraordinárias.
O caso do ensaio Amor, recentemente publicado pela Guerra & Paz, é um bom exemplo disso mesmo. Escrito como uma longa entrada para um dicionário de literatura, conjuga todas as qualidades ensaísticas de Sena. Não há uma linha desinteressante, a profusão de teses é infindável e a concisão permite ao leitor explorar por si tudo aquilo que no ensaio está só em potência. É uma poderosa súmula de psicanálise e história das religiões, literatura e estruturalismo, em que as perspetivas se iluminam mutuamente.
A tese fundamental do ensaio é a de que, ao contrário do que, escorados na tradição cristã, fazem autores como C.S. Lewis, que atribuem fontes diferentes a tipos de amor diferentes, a experiência humana do amor tem toda a mesma fonte – a pulsão sexual. É à forma idealizada desta pulsão que se convencionou chamar amor. E se, na Antiguidade Clássica, a inevitável idealização ou conceptualização do amor adquire a forma ainda não muito restritiva do erotismo, com o avançar da civilização e o estabelecimento do Cristianismo como religião dominante, a conceptualização do amor torna-se mais restritiva. Até aqui, nada de especialmente novo, nem de muito afastado da vulgata psicanalítica. O que é interessante, porém, é o modo como Sena identifica este processo e o relaciona com a literatura. Como o amor é a tradução da pulsão fundamental, está permanentemente a tentar recuperar o seu carácter total e a subordinar a experiência humana. É possível, assim, fazer uma história da literatura a partir dos modos como esta recuperação se opera, como a ideia de amor se debate contra as várias formas que, em épocas diferentes, procuram recuperar a pulsão erótica. Dos amores dos romances de cavalaria aos grandes amores proibidos, das cenas de incesto ao modo como Camões se “unifica” a partir da ideia de amor, Sena revolve a história da literatura a partir desta sub-história da repressão do erótico.
É claro que é possível, para lá das objeções à tese freudiana fundamental, questionar a própria interpretação dos modelos literários. É difícil olhar para os amores proibidos como uma manobra social educativa quando estes, no limite, exacerbam a paixão por estes amores. É difícil, também, olhar para as compreensões amorosas cristãs como tentativas de aguar o erotismo quando há toda uma tradição de poesia mística que o recupera e põe em primeiro plano. O ponto, contudo, não está na verdade das teses de Jorge de Sena. Aquilo que o torna sempre digno de leitura é a consciência de que aquele que escreve tem de ter algo grandioso para dizer. É verdade que esta consciência por vezes prejudica Sena, que no seu afã de encontrar ideias originais e revolucionárias ignora o que está à vista de qualquer senso comum; contudo, a originalidade metódica, a ambição de todo o seu discurso, mesmo quando não resultam em iluminações sobre o objeto da crítica, são lições íntimas inestimáveis.
O caso dos seus ensaios camonianos é um bom exemplo disto mesmo. Não se pode dizer que, das suas análises, tenham saído contributos camonianos de acordo com as suas pretensões. A sua análise do vocabulário da lírica, pela circularidade do método, não alargou as certezas sobre o cânone, a contagem de cantos, versos e estrofes d’Os Lusíadas tem um lado até bizarro que é fácil de identificar, e contudo a sua experiência de Camonista é das mais interessantes do século XX. Sena quer provar a unidade de Os Lusíadas, contra a ideia de que seria um poema construído a partir de fragmentos. A relação da rota da viagem com a extensão do poema, a posição simétrica dos episódios amorosos, tudo isso mostraria a unidade. Diante do problema, Sena procura o método com um desembaraço muito incomum. Poucas pessoas seriam capazes de se aventurar pelo estruturalismo mais árido na tentativa de perceber a unidade formal do poema e pelas genealogias quinhentistas para justificar o porquê daquelas personagens e não outras n’Os Lusíadas. É certo que Sena, como já o dissemos, não teve nunca a capacidade para aprofundar a elasticidade mental do seu raciocínio – a genealogia que traça para Camões, por exemplo, é uma ficção prodigiosa – contudo, o modo como aproveita o surgimento de um índice analítico d’Os Lusíadas para logo transformar a análise tradicional dessa mesma obra – concentrada nos episódios – numa análise temática feita a partir das ocorrências vocabulares é sempre digna de admirar.
Não nos parece que o génio metodológico de Sena seja tão claro a respeito de outros autores como a respeito de Camões; as suas lições sobre literatura inglesa são mais didáticas e as apreciações sobre poesia contemporânea talvez um pouco contidas, com uma prudência própria de quem sabe que está a navegar numa perigosa confluência de análises e amizades. Há, porém, outro autor a quem Sena dedicou páginas não tão inventivas – também porque os problemas filológicos, de outra ordem, não o exigiam – mas igualmente importantes. Poucos críticos valorizaram tanto a prosa de Pessoa como Sena. O temperamento filosófico de Pessoa, a sua clareza de raciocínio, foram várias vezes salientados por Sena, que muito se esforçou por elevá-lo à categoria de grande pensador. O mundo de Pessoa é, naturalmente, um mundo em que o génio analítico de Sena está mais à vontade, em que há de facto uma consciência sobre a produção literária que torna tudo consequente e, em certa medida, mais explicável. Ora, a noção que Sena tinha disso mesmo levou-o a bater-se como ninguém pela ideia de que o mundo heteronímico de Pessoa não era, no fundo, um jogo de máscaras, mas sim uma declaração mais ampla sobre o modo de funcionar da mente e uma identificação de várias verdades, todas elas existentes, mas muitas vezes conflituantes.
É difícil não notar em Sena uma consciência da sua grandeza que provavelmente é até maior do que o seu verdadeiro tamanho; contudo, como crítico, e até parecendo às vezes que não, tem uma humildade incomum. O modo como se apaga e procura o tipo de discurso e as ideias capazes de melhor servir os autores que estudam fazem dele um crítico sempre capaz. Com uma originalidade difícil de descrever, uma originalidade que não é própria, no sentido em que provém mais daquilo que analisa do que de um método muito vincado, mas isso só o torna mais fascinante. É porque é difícil escrever sobre ele que será sempre melhor lê-lo.