Na altura dos elogios fúnebres, a emoção do momento exacerba muitas qualidades. Nem sempre é discurso ao desbarato, muitas vezes os superlativos justificam-se mas, há casos em que palavras habitualmente exaltantes e cheias de significados definitivos, não chegam para exprimir a importância de uma obra. Os elogios de sempre parecem fracos para traduzir o extraordinário da pessoa e da situação. Foi assim com David Bowie, que personificava a própria ideia de estrela pop, e é assim com Ryuichi Sakamoto, que abraçou a música em toda a sua variedade e complexidade, derrubando barreiras para construir uma nova geografia de emoções.
Coincidência ou não, o Ocidente descobriu Sakamoto na companhia de Bowie, enquanto ator e compositor da banda sonora do filme “Feliz Natal Christmas Mr. Lawrence”, de Nagisa Oshima (1983). É verdade que já se sabia alguma coisa de Sakamoto, sobretudo via Yellow Magic Orchestra, um grupo na mira de quem gostava de pop eletrónica e estava fascinado com o advento tecnológico japonês, mas essas eram referências relativamente “alternativas”.
Para a maioria dos ocidentais, certamente para os portugueses, Sakamoto nasceu como estrela no cinema. “Feliz Natal Mr. Lawrence” foi a sua primeira experiência como ator e também a primeira banda sonora que assinou, e marcou definitivamente a sua longa e prolífica carreira. Voltou a ser ator, no “Último Imperador”, por exemplo, e no videoclipe de “Rain” de Madonna, mas a sua ligação ao cinema fez-se sobretudo pela música.
Na sua extensa discografia, além de 15 álbuns em nome próprio, estão contabilizadas 48 bandas sonoras, o que inclui filmes como “O Último Imperador” (que assinou com Cong Su e David Byrne e ganhou o Óscar de melhor banda sonora) e “Sheltering Sky” de Bernardo Bertolucci, “Saltos Altos” de Pedro Almodóvar ou “The Revenant” de Alejandro Iñarritu. Mas Sakamoto também compôs música para publicidade, jogos da Playstation, animé, e até para um episódio de “Black Mirror” (“Smithereens”). O mínimo que podemos dizer sobre este japonês elegante e recatado é que foi um músico extraordinário, que se interessou por todos os géneros e compreendeu que não havia distinção entre música dita séria e outra, tida como popular.
Sakamoto nasceu em 1952, o pai era editor livreiro (publicava Mishima), a mãe fazia chapéus. Cresceu no Japão, mas com influências ocidentais. Começou a tocar piano aos seis anos e a estudar composição aos 11. Apesar de viver mergulhado na música clássica, também se interessava por pop, adorava Beatles e Rolling Stones.
No início da década de 70, concluiu o curso de Composição na Faculdade de Belas Artes e Música de Tóquio, e fez mestrado em música eletrónica e étnica. Por esta altura, os seus interesses já incluíam Claude Debussy, que sempre disse admirar (“a música asiática influenciou Debussy, que me influenciou a mim”, disse várias vezes), e os Kraftwerk, que então lideravam uma verdadeira revolução tecnológico-musical. Entre a teoria e a prática, ganhou experiência a tocar com bandas de free jazz e como músico de sessão em estúdios de gravação.
Em 2018, numa entrevista ao The Guardian falou da vida agitada que levava em meados dos anos 70: “trabalhava com o computador na universidade e tocava jazz durante o dia, comprava rock psicadélico da costa oeste e os primeiros discos dos Kraftwerk durante a tarde, e tocava folk à noite”. O território natural de Ryuichi Sakamoto nunca teve fronteiras de forma ou,conteúdo, e essa versatilidade intrínseca permitiu-lhe estar sempre um passo à frente, ou com um pé em todo o lado.
O primeiro álbum em nome próprio, A Thousand Knives, sai em 1978, o mesmo ano que a Yellow Magic Orchestra (YMO) editou o disco de estreia. A YMO foi um fenómeno, primeiro no Japão, depois também na América e na Europa, sobretudo após o lançamento do single “Computer Game” que ainda hoje parece encapsular a ideia de um Japão ultra tecnológico e pop.
Em 1978, Ryuichi Sakamoto, Haruomi Hosono e Hyukiyro Takahashi (falecido a 11 de janeiro deste ano), mais conhecidos como Yellow Magic Orchestra, apresentaram uma visão da música do futuro que abriu caminho para a pop eletrónica de início dos anos 80, para bandas como Duran Duran ou Visage, que tocavam sintetizadores e usavam maquilhagem (todos com ar de soft boys, sobretudo Sakamoto, antes dos soft boys da K-pop, mas tudo isso parece vir de Bowie).
Não foi só a pop electrónica que olhou para a YMO. Pioneiros do techno, electro-funk e hip hop também reclamam a sua influência e até nomes como Daft Punk ou Cut Copy confessam a admiração pelo trio nipónico. O seu rasto chegou até hoje. O uso de sintetizadores e computadores, a música futurista, as letras meio sci-fi, aliadas a um visual andrógino e teatral, tornaram a Yellow Magic Orchestra adorada por público e media — e Ryuichi Sakamoto uma figura particularmente icónica.
Por isso, aliás, terá sido convidado por Bertolucci para ser Capitão Yonoi na história de amor reprimido contada em “Feliz Natal Mr Lawrence”. O mundo inteiro comoveu-se com o filme e sobretudo com a música, especialmente quando surgiu o single com a versão cantada por David Sylvian. “Forbidden Colours” não foi a primeira colaboração com o vocalista dos Japan, mas é certamente a mais conhecida na lista de discos conjuntos dos dois músicos.
Ao longo de quase 50 anos de carreira, Sakamoto trabalhou intensamente e de forma diversa, tanto sozinho como em associação com outros músicos. Colaborou com estrelas pop como David Byrne e Iggy Pop, e com músicos da eletrónica mais experimental, como Fennesz ou Alva Noto, com quem manteve uma das relações criativas mais prolíficas e interessantes da sua carreira.
Fez discos de bossa nova com Jacques e Paula Morelenbaum (o belíssimo Casa, por exemplo), obras conceptuais sobre o futurismo (Futurista) e música renascentista (The End of Asia). Interessou-se por música clássica, contemporânea e experimental, da mesma forma que olhou para pop, rock, funk, jazz, música africana ou oriental, flamenco ou outro género qualquer.
Para ele tudo estava ligado. Ryuichi Sakamoto gostava de falar do mapa que tinha na cabeça: “a música japonesa soa-me como arábica na entonação vocal e no vibrato. E na minha cabeça, Bali é ao lado de Nova Iorque”. Sakamoto redefiniu a geografia musical encontrando semelhanças, não estabelecendo diferenças, algo que se podemos ver traduzido também na sua atitude perante a vida.
Além de compositor, músico, ator e esteta, Sakamoto também foi um ativista. Ainda nos anos 60 envolveu-se no movimento estudantil, já neste século criou a editora Commmons (três emes, porque um é de música), que se preocupa com o rendimento dos músicos e procura dar-lhes condições de trabalho, além de ter como ambição fazer uma enciclopédia musical do mundo inteiro.
Na transição do século, lançou o Ep Zero Landmine, um disco contra as minas terrestres que uniu músicos japoneses e ocidentais, entre eles Yellow Magic Orchestra, Brian Eno, David Sylvian, Kraftwerk e Cindy Lauper. A ecologia, no entanto, tornou-se no seu principal foco. Começou a interessar-se por questões ambientais, o que ele chamava “transformar o Ego em Eco”, nos anos 90 e fê-lo ativamente. Em 2007 criou a more:trees, uma associação de conservação das florestas.
Além disso, recebeu um prémio das Nações Unidas pela digressão Playing The Piano 2009, em que tentou caminhar para a neutralidade carbónica, usando fontes de energia ecológicas em todos os espectáculos. Nos anos mais recentes, Sakamoto tornou-se particularmente ativo contra a energia nuclear. Em 2012, um ano depois do desastre de Fukushima, organizou um concerto contra a energia nuclear frente à residência oficial do primeiro-ministro japonês.Yellow Magic Orchestra e os Kraftwerk tocaram nesse espectáculo.
Sakamoto foi um cidadão do mundo com voz politicamente ativa, um músico e compositor exemplar, atento a novos desafios, um artista incomparável e imparável, que só abrandou porque foi obrigado. Em 2014, descobriu que tinha cancro da garganta, mas, apesar dos constrangimentos, continuou a trabalhar, ainda que de forma menos intensiva.
Compôs a banda sonora de “The Revenant”, por exemplo, e acabou por recuperar. O processo criativo e da remissão da doença, foi exposto no documentário “Coda”, de 2017, onde afirmou “não dou nada por garantido. Mas sei que quero fazer mais música. Música que não terei vergonha de deixar. Trabalho com significado”.
Nesse mesmo ano lançou Async, um dos seus trabalhos mais belos e introspetivos, e, quando tudo parecia fluir, novo choque durante a pandemia. Em 2021, foi-lhe diagnosticado cancro do cólon, em rápida evolução. Sakamoto parece ter enfrentado tudo com serenidade, ou com a atitude zen que costumamos atribuir aos orientais, e continuou a ser generoso com o público.
Em dezembro de 2022 deu um último concerto, transmitido online, em que juntou várias peças, gravadas separadamente porque a doença já não lhe permitia tocar durante o tempo normal de um concerto. Em janeiro deste ano, dia 17, na véspera de fazer 71 anos, lançou 12, o décimo quinto álbum em nome próprio, um disco feito em convivência íntima com a doença terminal, um diário de sofrimento, resistência e sublimação, do qual falou em entrevistas, quase sorridente. Até no caminho para a morte, Sakamoto parece ter compreendido algo que escapa à maior parte de nós. Só nos resta esperar que consigamos chegar lá através da música maravilhosa que deixou e aprendendo com o seu exemplo de vida.