Suspeito que a Covid-19 teve em mim um impacto semelhante à picada de aracnídeo radioativo sofrida por Peter Parker, vulgo Homem Aranha. Primeiro, estranha-se, depois desfruta-se de um inesperado super poder. No meu caso, e depois de uma malfadada fase em que tudo me cheirava pouco ou nada, parece que uma lupa se colou às narinas, com uma amplificação que se torna penosa se o aroma for excessivo, como o interior de um TVDE em que o motorista tropeçou num caldeirão de after shave.
Só assim se explica a agonia da minha experiência à mesa, por claro contraste com os restantes clientes em pleno Macau Dim Sum, que neste dia palravam e saboreavam com o mesmo entusiasmo com que se percorre uma encosta forrada a alfazema, enquanto eu resistia num campo minado. Ou eu sou muito esquisito e intolerável à gordura ou o corona nunca mais devolveu os cinco sentidos a estas pessoas. Sejamos claros: à mínima dúvida sobre os níveis de asseio de um estabelecimento, o meu entusiasmo quebra como um jarrão ming atirado da varanda de um décimo andar. A comida até pode ser ótima, ou parecer ótima, mas eu já não sou o mesmo.
Mudando de sentido, convenciou-se dizer que os olhos também comem, mas nem assim sossego as dúvidas. Olho para os enormes quadros nas paredes, entre flores e paisagens macaenses, avisto um aquário, lá ao fundo, cujo destino dos peixes me inquieta, e ainda um ecrã de TV sintonizado nas notícias requentadas da manhã. Como na generalidade destes sítios, a escassa iluminação natural angustia-me, e a predominância de preto e encarnado não aligeira o mood (vá lá que a casa de banho beneficiou de melhorias).
Ainda sou do tempo em que procurava lugar numa praceta escondida de Oeiras para provar as iguarias do Yum Cha Garden, o irmão mais velho deste espaço perto das Amoreiras, que abriu portas em 2015, e que entretanto foi rebatizado. Parece-me que a decoração deste não é tão clássica como a do primeiro — o que quer que “clássico” num caso destes signifique, mas adiante.
Passando para um terceiro sentido, o tato, ou neste caso a falta dele, sempre ouvi dizer que um sítio cantonês frequentado por legítimos cantoneses é um certificado de confiança inabalável, e ai de quem diga mal da massa de arroz ou do entrecosto com feijão preto ao vapor se houver um cantonês na sala. É obrigatório confiar no gosto mesmo que combine, como é o caso, uma sopa wan tan com um sumol de laranja. Nunca ninguém lhes perguntou se percebem ou não de comida, claro, mas que importa a ausência de bagagem gastronómica perante a capacidade de uma fisionomia ou conjunto de genes para validar um pato à Pequim? Se Darwin escrevesse críticas para a Bon Appetit, não faria melhor.
O que é facto é que se deliciam, sorridentes, com o que vai chegando à mesa. Exultam de felicidade como aquelas pessoas que tiveram o bom senso de pagar a extensão da garantia da máquina de lavar. Todos parecem uma família feliz. Uma família com a felicidade de ter perdido o olfato.
Chega o momento em que testo a audição de uma das empregadas e pergunto que cheiro é este.
“CHEIRO? QUAL CHEIRO?”
Devolve-me um ar imperturbável, vira costas, e regressa ao fundo da casa. Por momentos, acreditei que fosse expor o assunto a instâncias superiores, mas reaproxima-se em passo ligeiro com o papel e caneta. Não se trata do livro de reclamações, mas sim da ementa. Aqui não encontra as modernices dos QR Codes que se impuseram no rescaldo da pandemia. O cardápio, demasiado longo, é físico, e os números dos pedidos são anotados à mão. E porque uma pontinha de mistério cai sempre bem no curriculum de um restaurante chinês, a minha companhia jura a pés juntos que “têm duas listas”, uma para chineses e outra para “o resto”.
Não sei se têm ou não, mas sei que se me dessem um euro por cada sorriso das funcionárias, eu nem os crepes de camarão que pedi de entrada conseguia pagar. Exceção seja feita à dona, anfitriã à altura, sempre atenciosa com a sala, que acaba por funcionar como a super cola 3 que une as peças delicadas deste jarrão. Neste dia, aviei um chop suey sem me alongar muito mais.
Para evitar juízos apressados, e injustos, resolvo dar nova oportunidade ao Macau Dim Sum. Outras duas, aliás, entre turno do almoço e do jantar, para não duvidarem da generosidade. E parece que me leram o pensamento antes sequer do texto ter saído, o que me deixa bastante mais confortado (ou receoso do dotes divinatórios das gentes da casa). O espaço volta a estar cheio, o cheiro normalizado, e os raviolis de tubarão uma maravilha. Juntei-lhes bolinhos de carne de porco e vegetais, os pãezinhos com porco e mel, e ainda uma massa de arroz com vegetais, que combino com um chá quente de jasmim. Tudo me parece apaziguado e em condições aceitáveis para voltar a banquetear-me por aqui – afinal de contas, provar de muito um pouco é uma das máximas ajuizadas nesta paragem. E posto isto talvez seja prudente agendar consulta com o otorrino.
Uma das qualidades do restaurante é a invulgar capacidade de reunir sob o mesmo teto diferentes classes, credos e idades — volto a frisar que a proprietária, e respetivo malabarismo diplomático é de uma simpatia desarmante, o que me faria sempre regressar, nem que fosse com uma mola no nariz. Ao meu lado, um grupo de amigos remata o já longo repasto com uma tigela de arroz. Mais adiante, duas inglesas esmeram-se nos conteúdos para as redes. Ao fundo ainda, a gigante mesa que senta até 12, e ainda o pessoal dos escritórios vizinhos. “Pedi outra coisa”, exclama a senhora ao meu lado, “porco com mel e não agridoce”. Ignore-se o lapso que o prato que chegou à mesa “também tem bom aspeto”, e não se pensa mais nisso, não fosse o acessível preço do menu de almoço (9.95 euros) uma raridade nos dias que correm (um custo médio para dois a rondar os 30 euros também é um fator apetecível).
Em caso de hesitação, conte com o infalível formato take away, porque o que o nariz não cheira o coração não sente.
Silvestre da Silva escreve com muito coração, alguma cabeça e todo o estômago possível. No final, paga sempre a conta. Ainda vai na segunda fase da vida, espera chegar à terceira, e pela primeira vez mostra o que vale como Experimentador Implacável.