Situado numa zona onde se dá a junção de quatro placas tectónicas, o Japão é uma das grandes regiões sísmicas do planeta e sempre viveu sob a ameaça dos tremores de terra, que estão inscritos na vivência e na imaginação nacional, e apresentam expressão variada na sua cultura, incluindo o cinema. Um dos maiores e mais recentes foi o de 11 março de 2011, na região de Tohoku, cuja memória paira sobre “Suzume”, a nova longa-metragem animada de Makoto Shinkai (“O Tempo Contigo”) e está intimamente associado à existência da heroína do filme, a adolescente de 17 anos do título, que vive com a tia noutra zona do Japão após ter perdido a mãe e a casa na catástrofe, quando tinha quatro anos.

[Veja o “trailer” de “Suzume”:]

Os terramotos estão também no centro da história de “Suzume” pelo lado fantástico. Eles são causados por um enorme verme vermelho-fogo que vive nas entranhas do país e é invisível a quase todos os humanos. Menos aos Fechadores, cuja função ancestral, passada de geração em geração, é detetarem e fecharem os vários portais espalhados por todo o Japão, pelos quais o verme tenta sair para espalhar e destruição e a morte. É um desses Fechadores, o jovem Souta, que Suzume encontra uma manhã na rua, quando vai a caminho da escola, e na companhia do qual se lança numa aventura que não só a vai levar por todo o país, como também a revisitar o passado e a sua infância, e a compreender enfim um sonho que desde então a assombra.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Como estamos num filme de Makoto Shinkai, em “Suzume”, há pessoas encerradas por feitiços em cadeiras de criança, gatos sobrenaturais que são ao mesmo tempo deuses e chaves mágicas, estranhos fenómenos como auroras boreais e arco-íris simultâneos, e manipulações do espaço e do tempo. Que coexistem com um romantismo à flor da pele e um sentido de humor excêntrico, com uma descrição saborosamente pormenorizada do Japão contemporâneo e uma particular atenção à natureza e aos fenómenos meteorológicos, que são associados aos estados de espírito e à temperatura emocional das personagens (quem embirra com as convenções figurativas da “anime” – personagens de traços ocidentalizados, olhos esbugalhados, estereotipação expressiva – terá que dar o habitual desconto).

[Veja uma entrevista com Makoto Shinkai:]

Sobretudo depois do colossal sucesso de “Suzume” (mais de 10 milhões de espectadores só no Japão), já chamam a Makoto Shinkai “o novo Miyazaki”. A referência não faz qualquer sentido, porque o realizador de “Viagem a Agartha” tem um universo visual e narrativo próprio, uma colecção de temas recorrentes, uma identidade e uma estética cinematográficas, e um sentido do maravilhoso e do tremendo que não se confundem com quaisquer outros. E que em “Suzume”, combinando de novo animação tradicional e digital, Shinkai volta a explanar com  deslumbrante eloquência — e em amplo Cinemascope pela primeira vez.

Fantasia exuberante com uma fina camada de verniz romântico, história de descoberta familiar e filme-catástrofe intimamente associado à história trágica e traumática do Japão com os sismos e às suas manifestações mais recentes e devastadoras, “Suzume” organiza-se como um “road movie”. É uma fita sempre em movimento ao longo do país do Sol Nascente, em que Makoto Shinkai integra o fenómeno das crescentes áreas abandonadas do Japão por causa do envelhecimento da população e do decréscimo da taxa de nascimentos, contrastando com a juventude estudante das suas personagens principais. A não perder, enquanto aguardamos o novo filme de Hayao Miyazaki (que Shinkai, aliás, não se esquece de homenagear a certa altura de “Suzume”).