O discurso teve mesmo de ser interrompido. O Presidente brasileiro Lula da Silva tinha dito meia dúzia de frases, agradecendo o convite e dizendo que se sente “em casa” em Portugal, quando a bancada parlamentar do Chega interrompeu o momento. De pé, envergando cartazes que diziam “Chega de corrupção” e bandeiras da Ucrânia, André Ventura e os seus deputados iniciaram várias pateadas, batendo com as mãos na bancada, e tornando impossível a Lula continuar.

Do lado esquerdo do hemiciclo, as bancadas à esquerda rapidamente começaram a aplaudir de pé, na esperança de abafar o som vindo da direita. Alguns dos convidados ao centro, como o ex-candidato presidencial apoiado pelo PS, António Sampaio da Nóvoa, acompanharam. Outros, como o líder do PSD, Luís Montenegro, mantinham-se calmos e sentados, sem aplaudir.

O ambiente, porém, era de tensão e parecia impossível o discurso poder continuar. De tal forma que o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, decidiu intervir, pedindo aos deputados do Chega “urbanidade, cortesia e educação que é exigida a qualquer representante do povo português”. E, perante a continuação do protesto, chegou mesmo a irritar-se: “Chega de insultos, de degradarem as instituições, de porem vergonha no nome de Portugal”, gritou em direção aos deputados do Chega, para acabar aplaudido de pé pelo Parlamento.

Acalmados os ânimos, Lula da Silva — que até aí aguardou, calmamente, que o ruído diminuísse — prosseguiu. E quem achava que o discurso do Presidente brasileiro não seria contaminado pelo facto de ter lugar no mesmo dia em que se comemorava o 25 de Abril enganou-se.

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O “salto para o futuro” do 25 de Abril e “Tanto Mar” a separar Portugal e Brasil — até agora

“O 25 de Abril permitiu que Portugal desse um verdadeiro salto para o futuro. O movimento iniciado pelos Capitães de Abril há exatos 49 anos reconquistou as liberdades civis, a participação política dos cidadãos, a democratização política, os direitos trabalhistas e a livre organização sindical, criando as bases para o desenvolvimento económico com justiça social. É isso que hoje estamos recordando e celebrando“, começou logo por dizer o Presidente brasileiro.

Seguiram-se referências a “Tanto Mar” de Chico Buarque, que ilustra como alguns brasileiros suspiravam por algo semelhante à Revolução dos Cravos para por fim à ditadura militar, mas também à “Grândola, Vila Morena” de José Afonso, que “embalou” a luta no Brasil. E Lula da Silva aproveitou o seu discurso para falar sobre a situação no seu país, criticando a governação do seu antecessor, Jair Bolsonaro, que tentou “atrasar nosso relógio em 50 anos”.

Os irmãos portugueses assistiram a tudo, preocupados com a possibilidade de que o Brasil desse as costas ao mundo”, vaticinou.

Mas, agora, o Brasil está de volta: “Tenho viajado o mundo para reencontrar nossos parceiros. E tenho reafirmado que o Brasil que todos sempre conhecemos voltou à cena internacional.” Foi essa a mensagem principal do discurso de Lula, que enumerou as suas prioridades (fim da fome, transição climática, combate às desigualdades), entre elas o regresso do país ao palco internacional, do qual considera que se afastou durante a presidência Bolsonaro.

Divergência sobre Ucrânia suavizada (mas ainda presente). E o papel principal do Chega

Ao falar de política externa neste momento, porém, o tema Ucrânia é incontornável. E foi aqui que o discurso de Lula entrou por um caminho mais sinuoso, já que é nesse tema que se evidenciam as diferenças face à postura externa de Portugal, que tem apoiado o país com armamento. O Presidente brasileiro quis sublinhar ideias como o “respeito pelo Direito Internacional” e a condenação da “violação da integridade territorial da Ucrânia”, mas nunca proferiu a palavra “Rússia”.

Mais: enfatizou uma e outra vez que o caminho tem de ser só e exclusivamente o da mesa das negociações.

Quem acredita em soluções militares para os problemas atuais luta contra os ventos da História”, disse Lula, repetindo que “é preciso falar de paz”.

Sobraram os entendimentos possíveis. A defesa de um lugar permanente no Conselho de Segurança (ONU) para o Brasil e o desejo de que o acordo entre União Europeia e Mercosul se acelere. Bem como a ideia de que os irmãos Portugal e Brasil continuarão a caminhar “orgulhosamente juntos” na cena internacional.

“Que Deus abençoe Portugal, abençoe o Brasil e viva a liberdade e a democracia. E não ao fascismo“, rematou Lula da Silva, numa deixa final improvisada que soou a resposta aos protestos do Chega. E eis que, perante os aplausos de quase toda a Assembleia (Montenegro voltou a não aplaudir, por exemplo), Santos Silva referiu novamente o elefante na sala, pedindo diretamente desculpas “pelo incidente” ao Presidente brasileiro.

Após serem ouvidos os hinos dos dois países, Lula saiu do hemiciclo — e o ruído voltou. Desta vez não pelos deputados do Chega, mas com vozes vindas da galeria, que entoaram “Grândola, Vila Morena”, acompanhados por alguns deputados e membros do Governo. Da bancada do PS, soaram gritos de “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”.

À saída, nos Passos Perdidos, o Presidente brasileiro enfrentou as perguntas dos jornalistas. Não sobre a Ucrânia, nem sobre a relação Portugal-Brasil, mas a maioria sobre como reagiu ao protesto inédito que enfrentou na Assembleia da República. Lula diz que “quem faz política está habituado a isso” e desvaloriza, mas acaba por responder. “Às vezes lamento porque quando as pessoas não têm uma coisa boa para fazer, para aparecer, fazem essa cena de ridículo”. À noite, disse, “quando deitarem a cabeça no travesseiro”, vão pensar: “Que papelão nós fizemos”.