Um estudo dirigido pelo arqueólogo João Zilhão, da Universidade de Lisboa, revela “conclusões precisas” sobre o modo de vida das populações que habitaram o território português, desde há cerca de cem mil anos até há cerca de dez mil.

As conclusões divulgadas pelo Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa (UNIARQ) provêm da análise da composição química do esmalte de dentes fósseis provenientes das escavações junto à nascente do rio Almonda, na região de Terras Novas, e permitem perceber o território percorrido pelos seus detentores.

O estudo revela assim “conclusões precisas sobre o modo de vida, a territorialidade e a subsistência das populações que habitaram o território português durante a última glaciação, entre há cerca de 100.000 e há cerca de 10.000 anos“.

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Desenvolvido no sistema de jazidas arqueológicas associado à nascente do rio Almonda, perto de Torres Novas, no distrito de Santarém, por investigadores do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, e das universidades de Trento (Itália) e Southampton (Reino Unido), o estudo foi publicado na The Proceedings of the National Academy of Sciences, revista oficial da Academia das Ciências dos Estados Unidos.

“O estudo representa um marco de grande importância para a Arqueologia, demonstrando como, mesmo para épocas muito remotas, existem hoje técnicas científicas que permitem abordar a vida das pessoas à escala do indivíduo, não apenas à da população”, realça o UNIARQ.

Os investigadores analisaram a composição química do esmalte dos dentes fósseis de humanos e de animais provenientes das escavações na nascente do rio Almonda, que vêm sendo realizadas desde 1988, afirma o UNIARQ.

Segundo o comunicado, “nas rochas, os isótopos do estrôncio mudam gradualmente ao longo de milhões de anos devido a processos radioativos. Por isso, o teor em estrôncio dos solos varia de lugar para lugar em função da antiguidade do substrato geológico. Essa ‘impressão digital’ isotópica passa dos solos para as plantas que neles crescem e através delas para a cadeia alimentar, acabando por ficar registada no esmalte dos dentes”.

A “comparação com o teor em estrôncio dos dentes permite reconstituir o território percorrido pelo indivíduo, humano ou animal, durante o período de formação do esmalte, que, para os dentes humanos analisados, dois pré-molares e um molar, é entre os cinco e os quinze anos”.

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Os arqueólogos usaram uma técnica que recorreu à amostragem por laser, “que permite colher e medir amostras ao longo de milhares de pontos selecionados segundo o eixo de crescimento da coroa do dente”.

No tocante aos fósseis humanos, as amostras foram obtidas a partir de dois dentes de neandertais do Paleolítico Médio, com cerca de 95.000 anos, encontrados na Gruta da Oliveira, e um do final do Paleolítico Superior, com cerca de 13.000 anos, encontrado na Galeria da Cisterna.

“Utilizando a mesma técnica, analisaram-se os isótopos do estrôncio no esmalte dentário de restos de rinoceronte, cavalo, veado e cabra-montesa procedentes das duas jazidas e ainda de outra pertencente ao mesmo sistema, a Lapa dos Coelhos”.

Quanto aos restos de caça, “mediram-se também os teores em isótopos de oxigénio, os quais variam sazonalmente, do verão para o inverno”. Assim, segundo a mesma fonte, foi possível determinar onde os animais andaram, e estabelecer em que época do ano frequentaram os diferentes territórios de pastagem.

“Os resultados obtidos mostram que, no caso dos neandertais de há cerca de 95.000 anos, a cabra-montesa era caçada no verão, ao passo que o cavalo, o veado e o rinoceronte estavam presentes num raio de 30 quilómetros ao redor onde puderam ser caçados ao longo de todo o ano”.

No caso do indivíduo do final do Paleolítico Superior, com cerca de 13.000 anos, “a subsistência era obtida numa área mais restrita – os cerca de 20 quilómetros da margem direita do rio Almonda, entre a nascente e a confluência com o Tejo – e o lugar de residência alternava sazonalmente entre estes dois pontos extremos do território”.

A caça principal era o veado, mas também a cabra-montesa, em quantidade importante. Apanhavam-se ainda pequenas presas como o coelho e peixes de água doce, como o sável.

Nesta época, a tartaruga-terrestre, muito consumida pelos neandertais, já se encontrava extinta nas regiões portuguesas, pelo que não aparece no “menu”, refere o comunicado.

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“É provável que a diferença no tamanho do território entre os neandertais do Paleolítico Médio e os magdalenenses do final do Paleolítico Superior esteja relacionada com a demografia. Com uma densidade populacional mais baixa, os neandertais podiam dispor de territórios mais vastos. No Magdalenense, o aumento da densidade populacional obrigou os grupos humanos a extrair a sua subsistência no interior de territórios mais pequenos, e daí o facto de passarem a ter sido explorados de forma mais intensiva as pequenas presas e o peixe de rio”, explica João Zilhão, coautor do artigo, citado pelo UNIARQ.