Tudo começa numa posição de força e de contrapeso. Dois intérpretes, dois corpos nus em sinal de respeito mútuo, a seguir de clemência, balançam entre as suas diferenças e semelhanças. É o princípio de um caminho e de uma performance para dois irmãos (dois corpos fraternos) em que se fala sobre a humanidade e as suas fatalidades. Trata-se de uma criação que é, em simultâneo, um livro de memórias pessoais, mas também um manifesto sobre a violência e o poder da empatia, que nasceu da ideia de um simples abraço. Hugo Cabral Mendes, jovem coreógrafo e bailarino de 24 anos, chamou-lhe “O Ser Inumano”. É a sua primeira criação, que irá apresentar pela primeira vez ao vivo esta quinta e sexta-feira, dias 11 e 12 de maio, na Largo Residências, em Lisboa, na abertura da 4.ª edição do festival Cumplicidades – Festival Internacional de Dança Contemporânea de Lisboa, que decorre até dia 21 deste mês.
Regressamos a um princípio de criação e à teoria do Big Bang. Ao escutarmos o Adagietto da 5.ª Sinfonia de Gustav Mahler começa um percurso de crescimento e de desenvoltura física. Quase como embriões, os corpos dos intérpretes, Hugo Cabral Mendes e Guilherme Barroso, ganham vida numa roda de movimentos que funciona entre várias dialéticas. Ora presos a uma posição, ora livres e separados, “O Ser Inumano” materializa um jogo de equilíbrio entre a proximidade e o afastamento. Para fixar uma ideia, explica Cabral Mendes, podemos olhar a performance como um foco sobre o comportamento dos átomos que chocam e se ligam entre si. Fala-se, afinal de contas, da humanidade e do caminho que prenuncia o fim da mesma. “Que lugar ocupa a matéria depois da potencial morte do Sol e da sua transformação em supernova?”, questiona o coreógrafo.
Nesta sua primeira criação, Hugo Cabral Mendes quis, em boa verdade, que se olhasse para estes corpos como exemplos de uma espécie em constante evolução genética. “Quando tratamos de um tema como o fim do mundo, estes corpos deixam de ser os nossos, são corpos da humanidade. Não têm lugar político ou ético – embora possam adquirir essas camadas”, explica ao Observador durante um dos ensaios. A peça, desenvolvida sempre de forma coletiva com o ator e performer Guilherme Barroso, leva-nos a entrar numa ideia de arco temporal, que vai do princípio dos tempos até à possível extinção da humanidade, mas em que não deixa de estar presente uma ideia de esperança, que se representa em diferentes momentos pelo abraço. “O abraço é um ato inerentemente humano. Existe porque somos seres de afeto, dependemos uns dos outros”, acrescenta. Mesmo moldados por um mundo atual, carregado de violência e de indiferença, ainda é no gesto humano de afeto que subsiste a esperança.
Também aí a sua criação encontra uma dicotomia, que supera uma ideia entre bem e mal, o que é certo ou errado – está numa dependência entre o que é material e imaterial, humano enão humano. O nome para a criação, ressalva, foi buscá-lo ao filósofo francês Jean-François Lyotard e à sua obra O Inumano. Neste texto de 1988, o autor explica que os humanos são arrastados num desenvolvimento inumano que torna obsoleta uma ideia de progresso, que durante décadas definiu muito do contexto social e político, sobretudo no mundo ocidental. “Ele fala sobre como é que o ser humano, desde o princípio dos tempos se está a destruir a si próprio”, explica o coreógrafo. A resistência, segundo o filósofo francês, subsiste na capacidade de se poder apoiar noutro inumano e criar assim uma alternativa perante a falência de um sistema humanizado. Cabral Mendes teve por isso a necessidade de mostrar como um corpo não vive sem os outros, mesmo quando a morte se torna uma evidência.
Uma praga humana
“No primeiro dia de ensaios, chegou aqui e disse-me ‘vamos dar um abraço’”, conta Guilherme Barroso. Foi assim que se começou a desenvolver esta criação, sustentada numa ideia de intimidade e de grande companheirismo entre os dois intérpretes. “Conhecemo-nos num workshop que fizemos do coreógrafo Francisco Camacho, onde tivemos de fazer vários exercícios de improvisação juntos”, explica o ator e performer. Para “o Ser Inumano” era preciso ter uma relação de grande conforto e se poder levar ao limite aquilo que um corpo pode fazer em conjunto com outro. Ao longo de meses, o trabalho que colocaram nesta performance foi visceral e de grande esforço, mas também de saberem exatamente como é que um podia amparar o outro.
Ao longo da performance, os corpos dos dois intérpretes vão-se desprendendo, voltam a posições mais rígidas e assumem um grau de violência abismal. Não deixam de suster um lado de metamorfose kafkiana. Hugo Cabral Mendes diz que podiam ser nacos de presunto, num processo de secagem e maturação. Na repetição – um dos elementos mais presentes no desenho coreográfico – existe um lado de penitência. São afinal de contas dois corpos que se separam, mas que se volta a encontrar. Quando um cai, o outro levanta. Quando um parece estar à beira da morte, a outra busca uma forma de o reanimar. “Não é um espetáculo fechado, falamos de relações de proximidade e de afastamento. Com este trabalho subsiste a nossa tentativa de dar espaço para que o espetador consiga situar-se a si próprio, entender como é que ele próprio se relaciona com os outros corpos”, sublinha Guilherme Barroso.
Na sinopse de “O Ser Inumano”, os criadores falam de vibração e de memória. Cada gesto feito em palco sustenta um caminho biográfico, feito de experiências. Um lado mais performático e outro mais dramatúrgico. São muitas as imagens que deixam antever, desde a Pietà de Michelangelo ao lado escultórico dos corpos na antiguidade clássica, passando por um lado infantil e de playground, marcado pela inocência. “Podiam ser dois irmãos aborrecidos num domingo à tarde, mas queremos que seja mais do que isso. Se pensarmos no ser humano como um ser vivo que passou por uma grande evolução genética, vemos que se continuarmos a evoluir de certa forma, somos potencialmente a única espécie capaz de se extinguir a ela própria. Há um processo de imunização: damos vida, mas somo capaz de eliminar a vida por completo”, sintetiza Hugo Cabral Mendes.
O que acontece no fim não se sabe exatamente, nem o que sucede verdadeiramente com a matéria. “Somos uma praga humana, em que dependemos das escolhas que fazemos e da forma como vamos encarar os outros”, completa. Ainda assim, não se trata apenas de um alerta pessimista: “Enquanto houver afeto a humanidade ainda se salva – o abraço é o último reduto da humanidade, porque enquanto houver dois corações que se juntam há fé e esperança”.
A 4.ª edição do Cumplicidades – Festival Internacional de Dança Contemporânea, decore até 21 de maio, espalhada por oito locais diferentes da cidade de Lisboa: Quartel do Largo do Cabeço de Bola, São Luiz Teatro Municipal (Sala Mário Viegas), Rua das Gaivotas 6, Teatro Taborda, Centro Cultural de Belém (Blackbox), Centro de Artes de Lisboa, Auditório da Biblioteca de Marvila e a discoteca Lux. Estão previstos 10 espetáculos em Lisboa, num total de 24 sessões. Em paralelo, decorre o projeto educativo Passaporte da Dança, que inclui 321 aulas de dança gratuitas e dirigidas a todas as idades. Este ano, a iniciativa chega a Oeiras, Amadora, Sintra, Mafra, Odivelas, Cascais e Setúbal.
Além dos espetáculos, estão previstas também três conversas de entrada livre: a 11 de maio fala-se de “Lugar de liberdade na arte, na cultura em nós e no outro”, no Quartel do Largo Cabeço de Bola; a 13 os temas em debate são “Limites, fronteiras, margens e territórios no nosso corpo”, no Teatro Municipal de São Luiz; e a 20 o Museu Nacional do Teatro e da Dança recebe a conversa “Higienização Cultural: o que queremos deixar para um futuro presente.”