Era algo inevitável, quase inconsciente, daquelas que fazem todos manterem-se vivos porque não há maneira de viver sem dar largas ao sonho. Aquela tentativa de colocar o ritmo no pequeno grupo dos líderes quando a subida a Tre Cime di Lavaredo entrava nas decisões finais quase a compasso do apoio de dezenas e dezenas de adeptos portugueses que com aquele incentivo quase levavam o seu herói ao colo deu muita esperança, a primeira reação ao ataque de Primoz Roglic aumentou a crença num dia melhor, o último forcing de Geraint Thomas acabou por ser fatal não para uma qualquer queda abrupta na classificação mas para perder outros 20 segundos para os dois da frente. Após uma etapa complicada em Zoldo Alto, João Almeida deu aquela que era a resposta possível naquele que considerava ser o dia D da Volta a Itália. Mas não tinha acabado.

Obrigado João, qualquer que seja o resultado final: português acaba em 6.º e garante pódio no Giro (a precisar de um milagre para ganhar)

Mais uma vez, voltava a imperar a teoria do copo meio cheio e meio vazio. Olhando para a última, o facto de ter perdido mais 20 segundos num total de 40 nas duas derradeiras etapas de montanha acabou por saber a pouco perante duas semanas regulares e uma estreia a ganhar no Monte Bondone. Mais: seria complicado voltar a encontrar este contexto de prova entre dificuldades, quedas, lesões e de novo a Covid-19 para poder ganhar a primeira grande volta no Giro. No entanto, e passando para a primeira, o aumento da diferença para o quarto lugar de Damiano Caruso numa tirada que poderia colocar minutos de diferença foi quase uma confirmação do primeiro pódio de sempre numa grande volta, algo que apenas Joaquim Agostinho alcançara no Tour e na Vuelta em termos históricos. Mais: havia ainda um contrarrelógio por disputar.

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A ligação entre Tarvisio e Monte Lussari poderia ter pouco menos de 20 quilómetros mas nem por isso era algo para relaxar. Pelo contrário. E o próprio reconhecimento feito pelo antigo campeão Alberto Contador no Eurosport mostrava bem todas as dificuldades que esperavam os corredores antes da consagração em Roma. Podia ainda João Almeida sonhar com um “milagre”? Podia. Porque havia memória daquela mítica tirada da Volta a França de 2020 em La Planche des Belles Filles, quando Tadej Pogacar meteu quase dois minutos em Roglic para segurar a vitória. Porque o próprio João Almeida teve uma particular atenção no cuidado para este contrarrelógio a subir no estágio em altitude que fez. Porque depois de tantos azares e do que poderia ter acontecido mas não aconteceu o Giro já aceita como naturais as mais improváveis surpresas.

“Dei tudo o que tinha. Não foi tão mau assim porque estive na frente até aos últimos 700 metros. Depois eles foram um pouco mais rápido do que eu, mas globalmente estou satisfeito. Ainda temos o dia de amanhã [este sábado], que será muito duro. Vou dar o meu melhor. Não é impossível até acontecer… Vamos dar tudo o que temos e vamos ver. No final, ficarei sempre feliz. Quando tenho pernas, gosto. Mas hoje [sexta-feira] não gostei nada mesmo. Foi mais um dia duro na bicicleta. Falta um dia agora. Amanhã será a decisão da corrida, vamos dar tudo. Se alguém não se sentir bem há certamente a possibilidade de haver grande margem. As pernas vão mandar. Tudo pode acontecer. A vitória ainda não fugiu, nada é certo, por isso vamos lutar. Até ao final tudo é possível. Já viram que tudo pode acontecer. Temos de fazer a nossa própria corrida, lutar e no final estarei feliz”, comentou o português da UAE Team Emirates após a etapa.

Além de ter alcançado a primeira vitória em etapa no Giro, a terceira de corredores portugueses em Itália após os triunfos de Acácio da Silva e Rúben Guerreiro, João Almeida estava muito próximo de fechar o Giro em posição de pódio, algo que só acontecera antes com Joaquim Agostinho na Vuelta de 1974 e no Tour de 1978 e 1979. Só isso, qualquer que fosse o resultado final, era uma vitória. No entanto, o português queria mais e não tinha propriamente muito a perder face aos três minutos de avanço sobre Damiano Caruso. O que poderia ainda acontecer com Almeida quando todos olhavam para Thomas e Roglic chegara à decisão.

Até às 16h, altura em que ia começar a sair o top 5, houve um pouco de tudo mas sem impacto para aquilo que seria a classificação geral: Pascal Ackermann entre sorrisos e sorrisos num dia que não era para si mas que ainda deu para andar de teleférico como todos os restantes corredores, Michael Matthews a atirar-se para o chão depois de cortar a meta, Mark Cavendish a ter uma despedida digna para que conquistou o estatuto de um dos melhores sprinters de sempre, uma grande surpresa chamada Matthew Riccitello, por sinal o corredor mais novo desta Volta a Itália, a ter um tempo canhão que se arriscava a ficar entre os dez melhores do dia tamanha foi a diferença da marca do elemento da Israel a comparar com todos os outros.

A partir do último grupo, era mais “a sério”. E foi a UAE Team Emirates que começou a marcar uma posição, com Jay Vine e Brandon McNulty a fazerem os melhores tempos parciais e o norte-americano a conseguir mesmo bater depois o australiano com o registo do dia que perdurou até Sepp Kuss, o mais fiel escudeiro de Roglic, ter batido por dois segundos os 45.30 de McNulty. Os três da frente estavam prestes a partir com três minutos de diferença e o primeiro registo parcial começava a dar uma imagem sobre o que se poderia esperar no final do dia: Damiano Caruso estava com o melhor registo, João Almeida passou com menos quatro segundos em 13.53, Roglic conseguiu 13.49, Geraint Thomas ia com 13.51 (com aquela troca de capacete que ainda atrasou um pouco mais). Ou seja, “empate técnico” entre todos os candidatos à vitória.

A certa altura, quase como reflexo do que tinha sido esse início, a realização passou sobretudo a focar-se em Thomas e Roglic, quando o britânico estava a perder cerca de seis/sete segundos para o esloveno numa fase em que parecia estar mais “afogado”. Podiam ter ido ao engano: no segundo parcial, o português passou com o mesmo tempo de Sepp Kuss, o que abria a possibilidade de ganhar até a etapa mesmo que não fosse a tempo de mexer na geral até passar o canhão Roglic, a tirar cerca de meio minuto a todas as melhores marcas até então e a colocar em sério risco o triunfo de Thomas que estava virtualmente apenas com dez a 12 segundos de avanço até jogar com os azares do esloveno em contrarrelógios que tiveram novo episódio.

Roglic arriscou no tipo de bicicleta e acabou por ver a correia saltar numa parte de maior trepidação. Estava ali um verdadeiro golpe de teatro? Em condições normais, sim. No entanto, Roglic é um mundo à parte. Com mais ou menos azares, com mais ou menos apoio (e era mesmo muito), com mais ou menos equipa, quando está bem fisicamente é uma máquina imparável, um verdadeiro comboio de apenas duas rodas em andamento na estrada que transforma o alcatrão em carris para subir como se nada fosse. Se João Almeida fez um contrarrelógio fantástico, tirando mais 13 segundos a Caruso com o tempo de 45.05, Roglic passou com 44.23 e ficou depois da meta a fazer a festa perante o 45.03 de Thomas que foi começando a andar para trás na parte final e que terminou in extremis no segundo lugar do dia que podia ter caído para o português.

Com estes resultados, João Almeida tentou levar tudo até ao fim mas o melhor que conseguiu foi mesmo reforçar o terceiro lugar da geral que terminou com Roglic a ficar com menos 14 segundos do que Thomas, ganhando mais tempo a Damiano Caruso. E aquilo que fica é mesmo a valorização que o extraterrestre da Eslovénia (um dos porque há Tadej Pogacar) deu ao orgulho de haver um humano português capaz de fazer aquilo que até hoje só Joaquim Agostinho tinha feito: terminar uma grande volta no pódio da geral.