Há funcionários públicos que recebem abono de família sem ser pela Segurança Social e que, sendo elegíveis, não receberam o apoio de 90 euros por trimestre dirigido às famílias mais vulneráveis. Em causa estão trabalhadores que descontam para a Caixa Geral de Aposentações (CGA), com a qual a Segurança Social, que processa o apoio, não faz cruzamento de dados.

Em abril, o Governo começou a pagar um apoio trimestral de 90 euros (30 euros por mês) à famílias mais vulneráveis com os mesmos requisitos que se aplicavam aos apoios semelhantes dirigidos a estes agregados que foram pagos em 2022 para fazer face ao aumento do custo de vida. Ou seja, podem receber os agregados familiares que incluam, pelo menos, um beneficiário de tarifa social de energia, complemento solidário para idosos, rendimento social de inserção, complemento da prestação social de inclusão, pensão social de velhice, pensão social de invalidez, subsídio social de desemprego e abono de família até ao segundo escalão. A segunda tranche começou a ser paga a 19 de junho.

Não há nada no diploma do Governo que cria este apoio que exclua os funcionários públicos que descontam para a CGA (ou seja, os trabalhadores que começaram a trabalhar no Estado antes de 2006 dado que só a partir desse ano é que a inscrição na Segurança Social passou a ser obrigatória). Mas há quem, sendo elegível, não esteja a receber. O problema estará a afetar quem recebe abono de família até ao segundo escalão através da CGA ou do respetivo serviço em que trabalha. É que, nestes casos, a Segurança Social não tem informação de que estes trabalhadores recebem o abono que os tornaria elegíveis.

O Bloco de Esquerda, que enviou um pedido de esclarecimento ao Ministério da Segurança Social sobre a situação no início de junho, pede que o problema seja resolvido. “Não pode haver forma de pessoas que cumprem os critérios não estarem a receber. Devia ter havido alguma forma de colmatar esta situação, com cruzamento de dados, para que quem tenha direito pudesse receber”, diz Isabel Pires, deputada do Bloco, ao Observador. O Ministério da Segurança Social, liderado por Ana Mendes Godinho, não respondeu às perguntas do Observador.

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Ao grupo parlamentar bloquista chegaram queixas de funcionários públicos que dizem ter sido excluídos por descontarem para a CGA. “Também de fora deste apoio extraordinário às famílias vulneráveis permanecem os trabalhadores e trabalhadoras da Administração Pública que descontam para a Caixa Geral de Aposentações (CGA) — e não para a SS [Segurança Social] —, porque apesar de serem beneficiários do 1.º e 2.º escalão do abono de família, a gestão é feita pela SS, sem qualquer cruzamento de dados, por exemplo, entre SS, Autoridade Tributária e CGA”, lê-se na pergunta enviada ao Governo. Em pelo menos um caso, um trabalhador também não recebeu os apoios aos mais vulneráveis de 2022 (que totalizaram 360 euros).

“É inaceitável que quem poderia beneficiar deste apoio — que pretende proteger os mais vulneráveis — seja excluído, porque não há comunicação entre as várias entidades públicas, para que todas [as] pessoas que preencham os requisitos definidos pelo Governo o possam receber”, acrescenta a deputada.

A CGA é responsável pelo pagamento do abono a beneficiários que já se encontram aposentados, mas, segundo apurou o Observador, não terá recebido qualquer orientação para pagar, também, o apoio dos 90 euros trimestrais. Já para os funcionários públicos inscritos na CGA, mas que ainda estão no ativo, é o respetivo serviço a proceder ao pagamento. O Observador questionou o Ministério da Presidência, que tem a pasta da função pública, sobre se houve alguma orientação para que este pagamento seja feito pelos serviços, mas fonte oficial remeteu para o ministério de Ana Mendes Godinho, que não respondeu.

O abono de família é calculado com base no rendimento do agregado a dividir pelo número de número de crianças e jovens com direito a abono acrescido de um. Ao Observador, José Abraão, líder da Federação de Sindicatos da Administração Pública (FESAP), desconhece casos de funcionários públicos afetados e acredita que o universo não será muito significativo. Mas, feitas as contas, bastará que um agregado seja composto por um funcionário público que receba o salário mínimo e tenha um dependente a cargo para poder beneficiar do segundo escalão, logo, ser elegível.

A lei que cria o apoio trimestral também prevê a atribuição de um “complemento ao apoio extraordinário para crianças e jovens”, de 15 euros por mês. Ao contrário do que acontece com o apoio de 90 euros, neste caso, a lei determina que “nas situações em que o abono de família para crianças e jovens é pago no âmbito do regime de proteção social convergente [CGA], o complemento ao apoio extraordinário para crianças e jovens é pago pela respetiva entidade processadora”.

Deco recomenda que funcionários excluídos façam queixa à Segurança Social ou à Provedora de Justiça

A questão começou a ser levantada em fóruns da Deco logo em abril, mês em que a primeira tranche do apoio foi paga, e tornou-se mais comum ao longo do mês de maio. Uma funcionária pública diz que tem a tarifa social de energia e segundo escalão da Segurança Social. “Já perguntei e não me sabem dizer como receber os 90€ do apoio. Também não recebi o último apoio de 240€, embora tenha direito por reunir 2 critérios”, lê-se.

“Desconto para a caixa geral de aposentações e recebo abono de família pelo 2 escalão. Ainda não recebi qualquer apoio e não tenho qualquer resposta das várias entidades”, refere outro testemunho. “Não recebi os 90€ a que tinha direito. Tanto a Segurança Social como a minha entidade patronal não me sabem dizer quem terá de mos pagar visto eu não receber abono pela segurança social”, indica outra trabalhadora.

“Quem desconta para a CGA e tem tarifa social e 2º escalão também necessita do apoio, todos têm os mesmos direitos. Não percebo porque é que nestes casos o apoio não é atribuído. Não vi referida esta desigualdade de critérios em nenhuma lado”, critica-se, noutro comentário.

Ao Observador, Sónia Covita, jurista da Deco Proteste, salienta que o apoio é realizado de modo automático pela Segurança Social e que, por isso, os dados bancários devem encontrar-se atualizados (essa atualização, se necessária, pode ser feita pela Segurança Social Direta). A jurista sugere que quem acredita ter direito e não recebeu faça queixa à Segurança Social ou à Provedora de Justiça.

“Os beneficiários com direito ao apoio, mas que ainda não o receberam, designadamente, aqueles que recebem a pensão através da Caixa Geral de Aposentações, devem apresentar uma reclamação por escrito na Segurança Social. Podem fazê-lo através da Segurança Social Direta ou presencialmente, num balcão da Segurança Social. Por último, adianta-se que é possível apresentar queixa no Provedor de Justiça ou através da plataforma reclamar”, recomenda.

Ao Observador, a Provedoria de Justiça diz que recebeu, “recentemente”, algumas queixas  — três — que “estão numa fase ainda inicial de instrução”. O Observador questionou o Ministério da Segurança Social sobre quantos trabalhadores elegíveis ficaram de fora do apoio, mas também não obteve resposta.

Há outros casos de exclusão

O Bloco recebeu denúncias de outro teor referentes ao apoio aos mais vulneráveis. Segundo Isabel Pires, há pessoas que não estão a receber porque os dados relativos aos beneficiários da tarifa social de energia que estão a ser enviados pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) para a Segurança Social “aparentemente” não estão atualizados. “Perante as reclamações apresentadas, a SS [Segurança Social] remete para a DGEG que, por sua vez, está a demorar, em média, dois meses a responder.”

Também estão a ser excluídas as pessoas que, sendo beneficiárias da tarifa social, não recebem porque o contrato está em nome do progenitor que não é o requerente do abono de família. Nesse caso, a Segurança Social “aconselha a que o pedido do abono seja, então, feito pelo outro progenitor, mas, enquanto não é decidido o pedido, não é pago o abono e não há retroativos”, refere a deputada.

O apoio extraordinário é pago pela Segurança Social em abril, junho, agosto e novembro, através de transferência bancária.