Eis uma história que ninguém pediu, nem está à espera num obituário: há cerca de 25 anos, quando servia às mesas para pagar contas e escrevia num jornal de província, um grupo de pessoas – no qual se incluía um bebé de colo – entrou já tarde no restaurante em que eu trabalhava. Quando já era perto da uma da manhã, notei que o bebé dormia e desliguei a música, apenas para o grupo me chamar a atenção e pedir para voltar a pôr canções a tocar. Ainda perguntei se isso não incomodava o bebé, mas disseram-me que não. De modo que voltei a ligar o amplificador, mas mudei o CD – e cliquei play após selecionar uma canção específica, a um volume não muito elevado.
E passados poucos segundos começaram as reclamações – não pelo volume de som, mas pela, e passo a citar, “pouca vergonha”. Como não pedi para especificarem, não sei até hoje se o que ofendeu o grupo foi a letra (“Tu vas, tu vas et tu viens / Entre mes reins / Et je te rejoins”), o som (que parecia saído de um filme pornográfico, segundo me fizeram saber) ou os gemidos durante a canção. Quem sabe?
Para o grupo, terá sido apenas um momento de irritação na sua vida polida e burguesa – para mim, foi um momento de mudança absoluta: nesse dia (nessa noite, que já passava da uma da manhã e era suposto que eles já tivessem saído do restaurante, o que aliás se apressaram a fazer) descobri o verdadeiro poder da pop: chocar gente aborrecida, dizendo apenas e só da vida tal como ela é. Provocar, abanar a moral vigente, fazer o oposto do que é considerado certo – e desde então, nunca mais parei.
[“Je t’aime, moi non plus”:]
Pelo que nunca mais, pela vida fora, deixei de estar grato a “Je t’aime, moi non plus”, a canção que escolhi dessa feita para o grupo de pessoas chatas com bebé sonolento, um dueto escrito pelo grande provocador Serge Gainsbourg e interpretado a meias com Jane Birkin (que morreu aos 76 anos). Se isto foi um escândalo em Aveiro em 1998, nem consigo imaginar o impacto que terá tido quando foi lançada em 1969 (année erótique), fosse na liberal França (país de origem de Gainsbourg) ou na púdica Inglaterra, onde Birkin nasceu, em 1946, em Londres. (A canção, para quem não conhece, soa de facto a música de soft-porno, com o seu baixo balançado e as suas teclas lounge a fazerem a cama para letras explicitamente sexuais.)
Talvez a carreira que escolheu (e que a tornou um ícone, não só musical como também sexual) não tivesse sido a que o seu pai, um oficial da Marinha Real Britânica, sonhara para a filha; por sua vez, a sua mãe, Judy Campbell, era uma atriz talentosa, pelo que é possível que tenha sido dela que Birkin tenha herdado o lado criativo.
Aos 17 anos, Birkin conhecçou e casou com o grande compositor John Barry, de quem veio a ter uma filha (em 1967); um ano depois estavam divorciados e Birkin deixou Los Angeles, onde o casal vivia, para voltar a Londres. Nessa altura já tinha uma carreira, ou pelo menos pequenos papéis, como em “Blow Up”, o filme em que Antonioni procurou resumir as revoluções dos anos 60 e que levou Agustina a dizer que Antonioni não percebera nada. Agustina tinha imensas qualidades, mas entender cinema não era uma delas.
Em 1968, durante as filmagens de “Slogan”, Jane conheceu Serge Gainsbourg, com quem se envolveu e manteve uma relação durante anos – ao ponto de a carreira de ambos quase se ter confundido; “Je t’aime, moi non plus” não foi um caso único, os dois cruzaram-se em disco várias vezes, entre outras na inesquecível “Ballade de Melody Nelson”, lançando um álbum em conjunto, Jane Birkin / Serge Gainsbourg (de 1969). Nesse mesmo ano entrou no mítico “La Piscine”, com Romy Schneider e Alain Delon nos principais papéis.
É preciso dizer que quando Gainsbourg compôs “Je t’aime moi non plus”, ambicionava fazer parelha com Brigitte Bardot, que rejeitou o convite (a cantiga era um bocadinho explícita para ela). Birkin sentiu uma pontinha de ciúmes e isso foi o suficiente para se dedicar (como se costuma dizer, e peço desculpa pelo cliché) à interpretação da canção, que se não iniciou uma revolução, pelo menos tornou-se simbólica das mudanças culturais e sexuais pelos quais o ocidente passava.
Mais tarde a canção tornar-se-ia em filme – que conseguiu, não surpreendentemente, ser novamente polémico, em parte devido à libertinagem no ecrã, mas também (possivelmente) devido às cenas de sodomia, que levaram a que o filme fosse considerado imoral. Sendo a França o que é, uma série de realizadores e intelectuais saíram em defesa do que é, na realidade, um filme fraco que serve como desculpa para todo o tipo de javardice possível e imaginária.
Birkin não tinha ilusões quanto ao efeito que a canção e a sua associação a Gainsbourg teve na sua vida: “Quando eu morrer é por essa canção [‘Je t’aime moi non plus’] que me vão recordar”, disse um dia. E se isto é absolutamente verdade, também é uma injustiça, porque Birkin continuou a ter uma carreira musical e cinematográfica.
No cinema trabalhou com Agnès Varda, Godard, Rivette (o magnífico “La Belle Noiseuse”) ou Alan Resnais (o maravilhoso “É Sempre a Mesma Cantiga”, por exemplo) e nunca deixou de ser um ícone, tendo sido inclusivamente nomeada várias vezes para Césares (os Óscares franceses) para Melhor Atriz.
Mas a imagem pública dos ícones não é atreita a factos, antes à criatividade com que o público projeta o que quer na figura pública; quando “Je t’aime moi non plus” saiu, criou-se o mito de que Birkin e Serge haviam gravado a canção durante um momento íntimo, o que diz muito do desconhecimento que o público tem dos métodos de gravação: não é propriamente fácil isolar som numa cama, durante o coito. A canção foi, na realidade, gravada em estúdio, cada um na sua cabine, e Jane achava os rumores divertidíssimos.
Foi assim que ela guiou a sua carreira: experimentando, como uma criança que se está a divertir no parque, diversas artes, realizadores, compositores, e aceitando o que diziam a seu respeito, que era devassa, promiscua, enquanto procurava levar uma vida que não a aborrecesse. Ao contrário do que acontece com muitas divas, não era dada a rancores: esteve 11 anos com Serge (que morreu em 1991, aos 62 anos), tiveram uma filha (Charlotte, também música e atriz) e mantiveram-se amigos até ao fim.
Como com outros ícones, houve passagens pela moda (uma mala com o seu nome custava um T2 na Brandoa), mas, acima de tudo, Birkin foi ela própria moda – avessa aos ditames que se impunham às estrelas, Birkin criou um estilo muito pessoal e distante do habitual em ícones do cinema: vestia calças de ganga, usava sapatilhas, cortava o cabelo curto, fazia – para a parafrasear – tudo para parecer um rapazinho.
Ícones vão e vêm e têm períodos de revivalismo – e em 2006 ela lançou Fictions, um disco com uma série de versões (“Waterloo Station”, dos Kinks, “Harvest Moon”, de Neil Young, “Alice”, de Tom Waits), que a viu colaborar com uma série de músicos mais novos, como Mocky ou Gonzalés ou o magnífico Arthur H.
Podemos olhar para Birkin apenas como uma musa – e quando uma musa se perde, esvai-se um pouco do idealismo e dos sonhos que tínhamos quando a adotámos como fonte da nossa admiração. Como outros da minha geração, descobri Birkin tarde, com as reedições de Gainsbourg e só depois me inteirei da sua obra. O que encontrei parece-me uma lição maravilhosa: “A minha melhor obra foi a forma como vivi a minha vida real”, disse um dia, em entrevista, antes de explicar que tinha procurado a beleza e o prazer sem nunca abdicar da liberdade de fazer o que queria ou levar-se demasiado a sério.
Nunca acabo um obituário a dizer que um artista é eterno; mas o gemido de Birkin passou de geração em geração e estou desconfiado que enquanto houver uma mulher a gemer assim, Birkin não morrerá.