Numa viagem há uns anos pela Toscana, comi das pizzas plus courantes de ma vie, piores que na Marina de Vilamoura quando o amigo do Figo andava pelas revistas. Mesmo sabendo que ia visitar Florença, julgava que a ideia de comer uma pizza em Itália fosse um dos pontos altos da viagem. Aquelas pizzas medianas, que podiam ter sido comidas em qualquer ponto onde se vendem pizzas, foram uma desilusão que me ficou. Sou alguém para quem a pizza é um indicador da qualidade do tempo passado. Boas férias e estadias só são realmente boas se pelo meio existir uma pizza como deve ser.

L’Italie est un beau pays e a sua cozinha é merveilleux, justamente tida como umas mais saborosas (ainda que muito que nos é servido seja uma versão turística). Também é, infelizmente, das que mais engorda. Estamos no verão e há mais de um mês que não como pizza, porque estou numa fase de evitar hidratos, com a exceção de um pouco de pão do Alentejo de vez em quando. Custa-me, porque sou louca por comida italiana e tenho saudades. Há uns dias, quando ouviu o lamento de não poder andar a visitar os meus restaurantes italianos favoritos, o meu amigo Artur soltou um daqueles gritos que em Portugal funciona como um juízo que ninguém se atreverá a contestar. “Italiano” – gritou. “Tu sabes lá o que é comida italiana”. No fim do petit théâtre de convicções garantiu que me levaria ao “melhor italiano de Lisboa”. Respondi “non, merci”, sabendo que não resistiria à perdição redonda com rodelas de pepperoni por cima e informei o Artur de que não valia a pena sofrer com a tentação. No final do outono falaríamos.

Pois bem, dias depois, e apesar do meu protesto, saímos juntos do parque dos Restauradores e caminhamos para a Rua da Glória, onde fica a Piazza Sicília – Osteria di Michele Bono, o tal melhor italiano de Lisboa segundo o meu amigo. Fiel aos meus princípios, decidi que comeria pizza. Muita gente sabe o que eu sei: quando vamos a um italiano é para fingir que queremos ver a lista. Sabemos, eles e nós, que na verdade o que queremos é pizza (ou talvez lasagna), de preferência tostada na parte exterior, atulhada de coisas boas por cima, qual osso bucco qual quê, qual filete à milanesese, qual minestrone. Se formos mesmo especialistas, prolongaremos o fingimento, elegendo a pizza como prémio de consolação, só porque naquele dia não havia mais nada. Tão falso como saboroso.

Sem uma Vespa parada à porta ou tarantelas a ribombarem por umas colunas de som, na osteria do Michele também não há pizza, percebi depressa (e ligeiramente desapontada). Bem consultei a lista à procura delas, testando os confins do meu italiano, enquanto o Artur andava a cumprimentar toda a gente, Michele inclusive, bem como a simpática e elegante Mónica e o resto do pessoal, bem vestido, eficiente, discreto e sorridente. Só e triste, acabei por desistir, não havia pizza, comi um gressino e pronto.

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O chef Michele tem o ar de quem podia fazer qualquer papel num filme do cinema italiano. Seco como um deserto, seria convincente como ladrão de joias, mecânico da Ferrari, banqueiro do Vaticano, espetador que adormece no “Cinema Paraíso”. Ou proprietário de restaurante em Lisboa. É um homem magro, pequeno, falador e intimidante, de olhos vivos. Toda a sua disposição diz, “esta é a minha casa, sejam bem vindos assim que se comportem como eu espero”. Está ali com portes ouvertes para que gostemos da comida que prepara na pequena cozinha ao fundo da osteria. E é bom que gostemos, porque ele leva a sério o que faz. A mim, parece-me o melhor elogio que se pode fazer a um restaurateur, sobretudo porque não há muitos em Lisboa.

Para quem aprecia açucarar as descrições, o chef e proprietário costumava estar no Il Gatopardo, ali no Hotel D.Pedro V (ele, José Sócrates e muita gente que trabalhava nas Amoreiras, disse-me o Artur, talvez para justificar que Sócrates não era o único a frequentar o local) e abriu este pequeno restaurante nos Restauradores há poucos anos. Pelas saudações prolongadas, percebi pela cumplicidade que o Artur estava em casa e que Michele gostava dele. Compreendi melhor o provérbio chinês que diz “um homem sábio come sempre bem”. Suponho que uma mulher também, se estiver acompanhada por um desses homens.

A rua da Glória fica no Portugal sem tax refund e lembra bem como a capital portuguesa podia ser em qualquer parte do mundo africano, árabe ou europeu, o que para mim é uma qualidade. Há um certo desinteresse e anomia nas pessoas do sul que me agrada. O alcatrão brilha com o sol e irradia o calor, enxotando-nos para dentro das bodegas, cafés e osterias, onde existe sombra, petiscos e bebida fresca. Precisamente, no dia em que fomos havia um calor imenso e um sossego como só se encontra nos recantos de cidades como Barcelona, Nápoles ou Lisboa, assim se conheça. Ali, estamos pertíssimo das lojas de griffe e dos magasins de luxe, mas parece que fomos engolidos por outro tempo e uma vez instalados, começamos a descontrair, a comer, a aproveitar a luz baixa, a escapando à confusão.
Dentro da osteria, sentados numa pequena mesa com toalha branca e loiça inesperada e bonita, um escuro acolhedor e magnifique amestrou très rapidement a minha ansiedade em relação à pizza. A ausência de toalhas com quadrados vermelhos e brancos ajudou, devo acrescentar. Bem mais sossegado do que possam pensar e mais barato do que poderia ser, estamos ali para que Michele poder mostrar o que vale. E vale muito.

Lembrem-se do nome, Piazza Sicília, porque Michele é orgulhosamente da Sicília (como não?). Ele virá à vossa mesa, estejam certos disso, em especial se pedirem o menu de degustação (a 50 euros/pessoa e a que chamam Comissario Montalbano) e só por isso justificará a opção. Je le sais parce que je l’ai entendu a dar uma conferência sobre os seus preparos a uma mesa ao lado. Fiquei a saber que Michele muitas vezes prepara os pratos em função do que os seus fornecedores lhe trouxeram nesse dia e das visitas que faz aos mercados. Em muitos sítios é conversa, ali não é. Naquela vez, comi tomatina burrata, um camarão em cima de uns vegetais com sumo de laranja, um incrível filete de cavala com beringela, carregada de sabor, uma massa muito perto da fronteira de cá do al dente, com tomate fresco esmagado, uma pequena almôndega com risotto de açafrão, um doce qualquer com morangos que não memorizei. Sem querer ofender ninguém, aquilo eram tapas de luxo, pequenos artesanatos, manufaturas com empratamento à altura, comida da terra de Michele, revelando-nos que a Itália é ainda mais rica do que supunha. Acompanhamos com uma cerveja siciliana incrível, com cristais de sal daquela ilha, garantiram-me (Birra Messina, para os curiosos). Não estamos em fine dinning, estamos melhor, porque não há empregados chatos de volta de nós e existe uma certa informalidade confortável que nos permite conversar e trocar impressões, sem temer que nos olhem de lado ou nos mandem calar.

Fica a recomendação de marcar mesa e a informação de que o Piazza Sicília fecha às segundas feiras.

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameijoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.