Em 2002, a equipa de investigação liderada pela canadiana Janelle Curtis fez uma descoberta surpreendente: a Ria Formosa, no Algarve, albergava aquela que era, na altura, a maior colónia mundial de cavalos-marinhos. Mais de 1,3 milhões de cavalos-marinhos-de focinho-comprido (Hippocampus guttulatus) e de focinho-curto (Hippocampus hippocampus) ocorriam nestas águas.

Mas o entusiasmo deu gradualmente lugar à frustração quando, duas décadas depois, e após algumas flutuações intermédias na população, os especialistas constataram que os números estavam a diminuir rápida e drasticamente: “Chegámos a ter menos 90 a 95% dos efetivos encontrados no início do século”, diz Jorge Palma, investigador do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve. “Na altura, confirmámos a existência de degradação ambiental induzida por ação humana em algumas zonas, mas que por si, não justificava tamanha e tão abrupta diminuição.”

Foi então que se começou a suspeitar de crime: os cavalos-marinhos estavam a ser capturados ilegalmente para abastecerem o “mercado negro” da medicina tradicional chinesa. São-lhe atribuídas – embora jamais comprovadas cientificamente – virtudes benéficas anti-asmáticas, contra infeções na pele, na disfunção erétil e impotência, normalmente aplicadas na forma de chá. Anualmente, 15 a 20 milhões de animais são apanhados e injetados num mercado que move cerca de 1600 milhões de euros. As autoridades suspeitam que os caçadores os vendem a intermediários espanhóis, responsáveis por os fazerem chegar ao Oriente. A única apreensão conhecida foi realizada em Málaga, Espanha.

Além dos que são apanhados propositadamente, muitos são capturados por acidente: “A pesca ilegal é praticada com recurso a uma arte conhecida como arrasto de vara, que visa capturar espécies com tamanhos abaixo do permitido por lei, principalmente o choco, o linguado e o camarão, bem como outras de menor tamanho impossíveis de capturar com artes legais como os cabozes”, diz o investigador. “Isso causa a destruição das pradarias marinhas, o habitat de fundo e as macroalgas às quais os cavalos-marinhos se agarram e onde estabelecem as colónias. Uma vez destruído o habitat, os animais não capturados são obrigados a procurar outro que lhes seja mais favorável, e que podem até nunca vir a encontrar”. A poluição sonora, as alterações climáticas e a expansão da alga invasora Caulerpa prolifera são outras ameaças.

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O cavalo-marinho-de-focinho-comprido é maior e mais abundante na Ria Formosa do que o congénere de focinho curto. Ambas as espécies alimentam-se essencialmente de pequenos crustáceos e invertebrados, predando por “emboscada” e sugando as presas com a boca em forma de tubo. Vivem abaixo do limite da maré, entre os dois e os cinco metros de profundidade, chegando aos dez metros no Canal de Faro.

Tal como a generalidade dos “cavalos dos mares”, são nadadores lentos que usam a cauda preênsil para se segurarem a diferentes estruturas no fundo, como ervas, algas, conchas e outros animais invertebrados que vivem fixos ao leito. “Sendo maus nadadores, não têm capacidade de nadar contracorrente e ficam estáticos a maior parte do dia”, diz Palma.

A época de reprodução pode ter dois a três ciclos reprodutivos, resultando dai 300 a 400 juvenis por ninhada. É um ritual intrincado, quase mágico, que se inicia com uma comportamento de corte em jeito de dança. “Se um dos sexos está interessado, ocorre uma mudança de cor”, explica o especialista. “Do castanho-esverdeado passa para um branco-pérola com uma risca escura nas costas, tentando induzir no potencial parceiro uma reciprocidade de comportamento.”

Esse bailado sincronizado repete-se por várias vezes e dura entre dois a três dias. “Quando a fêmea entra na fase final de reprodução dos ovos, é um caminho sem retorno. Ela tem de os passar para o macho, caso contrário, os ovos estão perdidos e houve um gasto de energia em vão. Ela usa esses dias de corte para testar o empenho do parceiro”, explica o biólogo. Depois, o macho recebe os ovos numa bolsa, fertiliza-os internamente e protege-os durante o seu desenvolvimento até se transformarem em juvenis, num processo que demora 23 a 25 dias para o cavalo-marinho-de-focinho-comprido e 17 a 19 para o cavalo-marinho-de-focinho-curto.

Quando estão formados, o macho liberta-os acabando ai o seu cuidado parental e ficando os pequenos juvenis entregues a si próprios.. O casal não troca de par durante os ciclos reprodutivos, o que contribui para a sua reputação de espécie monogâmica.

O decréscimo alarmante de cavalos-marinhos na Ria Formosa fez com que as autoridades locais estabelecessem zonas de proteção. Nos últimos dois anos, Jorge Palma assinala um encorajador aumento da população. “Estamos agora aproximadamente com 30% dos cavalos-marinhos que tínhamos no início do século”, diz o biólogo. Um trabalho de monitorização e de preservação fundamental para que a grande ria algarvia continue a ser o habitat preferido desta espécie singular.

Nome comum: Cavalo-marinho-de focinho-comprido
Nome científico: Hippocampus guttulatus
Classe: Peixes ósseos
Estatuto de conservação: Informação insuficiente
Distribuição em Portugal: Ria Formosa, Algarve
Principais ameaças: Apanha ilegal para exportação no mercado asiático, pesca acidental, alterações climáticas e degradação do habitat
Dimensões médias: Pode medir até 18cm e pesar 16 gramas

Este é o sexto de dez artigos sobre espécies marinhas ameaçadas que ocorrem em Portugal. Na semana passada escrevemos sobre a maldição da barbatana do tubarão-martelo liso. E antes disso sobre a joia do lusco-fusco submarino, o golfinho tímido que está a viver um drama, o intrigante réptil turista das águas portuguesas e a ave marinha mais ameaçada da Europa. No próximo sábado apresentaremos outra.