A Rússia falhou no seu objetivo de conquistar rapidamente a Ucrânia, o que não significa que, pelo caminho não tenha cometido crimes de guerra “só comparáveis aos da Segunda Guerra Mundial”, e que não esteja “a caminho da destruição sistemática desse país”, agora num esforço de guerra de alguma forma autocentrado na figura de Vladimir Putin, que acusa de “sacrificar o seu exército e o seu povo pela sua sobrevivência pessoal”.

Em traços largos, e no que à guerra na Ucrânia diz respeito, é este o resumo da entrevista que o espanhol El País publica este sábado ao chefe da diplomacia da União Europeia, o também espanhol Josep Borrell.

Questionado sobre se a Europa fez e tem feito o suficiente no auxílio à Ucrânia, Borrell garante que “fizemos o que tinha de ser feito, ajudando a Ucrânia a defender-se sem alargar o conflito”, mas admite que nem sempre esse apoio chegou no tempo devido, considerando mesmo que essa “ajuda foi demasiado gradual”. “Em vários casos, os tanques, os mísseis Patriot, os aviões, começámos por dizer ‘não, não vamos fazer isto’ e acabámos por o fazer”, disse o chefe da diplomacia da UE.

Na comparação da postura europeia com a dos Estados Unidos, e questionado diretamente sobre se, nessas tentativas de evitar a todo o custo o alastrar da guerra para lá das fronteiras ucranianas, a UE não terá “seguido demasiado de perto” os passos de Washington, Josep Borrell preferiu recordar que esta é uma guerra sem precedentes, com características nunca antes vistas — mas com consequências por outro lado já comparáveis às da Segunda Guerra Mundial.

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“Temos de compreender que se trata de uma guerra convencional de alta intensidade que mistura as técnicas mais modernas (sistemas de reconhecimento eletrónico e de comunicação, drones) com os cenários mais clássicos da guerra de trincheiras. Vemos a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial e a guerra do futuro, tudo ao mesmo tempo. E com ataques sistemáticos e terríveis contra a população civil”, respondeu o alto representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança. “É preciso recordar isto àqueles que dizem que se trata de uma luta entre a Rússia e a NATO. Se assim é, qual é o objetivo destes bombardeamentos contra a população civil? Só Mariupol é várias vezes maior do que Guernica. Milhares de civis ucranianos foram deportados, incluindo crianças. Tratam-se de crimes de guerra de proporções históricas, só comparáveis aos da Segunda Guerra Mundial.”

Atirando diretamente a Putin, que, considera, “enganou-se em quase tudo” e sobrestimou a dependência energética da Europa em relação à Rússia, Borrell acusa ainda o Presidente russo de ter falhado no seu objetivo de conquistar rapidamente a Ucrânia, numa “guerra-relâmpago” — e de continuar a insistir na ofensiva contra o país vizinho à custa do povo russo e por motivações de “sobrevivência pessoal”.

“A Ucrânia é atualmente o país mais minado do mundo, com cinco minas por metro quadrado na linha da frente. Nestas condições, a guerra é uma guerra de tentativa e de desgaste. Um ataque frontal seria suicida, especialmente sem apoio aéreo. Mas, militarmente, a Rússia falhou. Putin queria uma blitzkrieg, mas já passaram 18 meses e está na defensiva. O seu projeto de conquista rápida foi um fiasco completo“, acusa o chefe da diplomacia da UE. “A Rússia já pagou um preço enorme em termos materiais e humanos: perdeu dois mil tanques, mais do que todos os exércitos da Europa juntos. Embora isso não signifique que tenha esgotado as suas capacidades, Putin está agora a sacrificar o seu exército e o seu povo pela sua sobrevivência pessoal.”

Os erros cometidos pelo Presidente da Rússia, enumera Borrell, terão sido muitos — o problema é que, por muito que tenham fragilizado Putin aos olhos da Europa e não só, como bem deixou patente a recente sublevação dos mercenários do Grupo Wagner, não o demoveram dos seus intentos, o que, diz, também ajudará a explicar os motivos por que “é tão difícil negociar a paz”.

“Putin pensou que a enorme dependência da Europa — especialmente da Alemanha — dos seus hidrocarbonetos nos impediria de lhe fazer frente. E, em ano e meio, o consumo de gás russo, com exceção da Hungria, caiu praticamente para zero. Ele pensava que tinha tudo sob controlo e, de repente, parte do seu exército, ou pelo menos parte das suas tropas, pega em armas contra os seus próprios camaradas e avança 400 quilómetros em direção a Moscovo. Este facto põe em evidência as fissuras do sistema político russo“, considera Josep Borrel.

“Putin mostrou que não tem o monopólio do uso da força, que é a marca registada dos regimes fortes. Num dia, diz que Prigozhin [líder do Grupo Wagner] é um traidor e, no dia seguinte, recebe-o em São Petersburgo, porque precisa do Grupo Wagner para as suas aventuras africanas. Repito: Putin vai sacrificar o seu povo e o seu exército pela sua sobrevivência pessoal e política, e é por isso que é tão difícil negociar a paz. E o que tem de ser negociado é um novo sistema de segurança coletiva que esta guerra destruiu.

A propósito dos termos em que pode ser negociado esse mesmo sistema e um futuro acordo de paz para a Ucrânia, questionado sobre se a UE poderá “obrigar” a Ucrânia a moderar ou reduzir as suas pretensões, Borrell é taxativo ao dizer que não cabe à Europa “ditar aos ucranianos os termos da sua paz”, mas garante também que só há abertura para aceitar uma espécie de “paz”, aquela que “reconheça que há um agressor e um agredido, que o agredido deve recuperar a sua integridade territorial e que o agressor deve pagar as consequências da sua agressão”.

Depois dela, admite também, será finalmente hora de trazer a Ucrânia para os 27, um processo que “é um grande desafio”, mas que a guerra acabou por determinar e “acelerar”. “Sem a guerra, a sua candidatura teria demorado anos. Trazer um país com a dimensão e as condições socioeconómicas da Ucrânia para a UE é um grande desafio: se aderisse amanhã, seria o único beneficiário líquido de fundos. Todos os outros tornar-se-iam contribuintes líquidos”, admitiu.

“Mas as guerras aceleram a história. E uma das consequências desta aceleração é o facto de a Ucrânia ser subitamente um candidato, e essa candidatura é séria. Será feita tão rapidamente quanto possível. A guerra empurrou definitivamente a Ucrânia para o lado que Putin não queria que estivesse.”