O Papa Francisco considera que é “inútil” voltar atrás na evolução das questões da fé e da moral na Igreja Católica e que “a visão da doutrina da Igreja como um monólito é errada“. As declarações foram feitas em Lisboa, durante a passagem do Papa Francisco por Portugal a propósito da Jornada Mundial da Juventude, na primeira semana de agosto, quando o líder da Igreja Católica se reuniu à porta fechada com os jesuítas portugueses.

Durante esse encontro privado, Francisco respondeu a várias perguntas de padres e irmãos jesuítas da província portuguesa da Companhia de Jesus, de que o próprio Papa também é membro — e a transcrição da conversa foi divulgada esta segunda-feira pelos meios de comunicação da Companhia de Jesus, incluindo o portal português Ponto SJ. Durante a conversa, Francisco falou não apenas da necessidade de evolução na doutrina da Igreja, mas deixou também alertas contra o “mundanismo espiritual” e contra o clericalismo, incentivou os jesuítas a não terem medo da “sociedade sexualizada” e a viverem entre os pobres, e pediu ainda à Igreja que deixe de olhar “com uma lupa” para “os pecados abaixo da cintura”, como se fossem mais graves do que outros pecados, como a exploração dos trabalhadores.

Uma das perguntas foi feita por um jesuíta que tinha passado recentemente um ano sabático nos Estados Unidos, um país onde a Igreja Católica tem vivido especialmente dividida na tensão entre progressistas e conservadores, com vários bispos a não pouparem nas críticas ao próprio Papa devido, sobretudo, a um conjunto de questões da moral sexual, como a abertura da Igreja às pessoas LGBT, e à grande relevância sociopolítica de temas como o aborto ou a eutanásia.

“Verificaste que nos Estados Unidos a situação não é fácil: há uma atitude reacionária muito forte, organizada, que estrutura uma adesão também afetiva”, respondeu o Papa Francisco. “Quero lembrar a estas pessoas que voltar atrás é inútil e que é preciso compreender que há uma evolução correta na compreensão das questões de fé e de moral, desde que se sigam os três critérios que Vicente de Lérins já indicava no século V: que a doutrina evolui ut annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate“, acrescentou, referindo-se a uma expressão que indica que a doutrina deve ser consolidada pelos anos, expandida pelo tempo e exaltada pela idade.

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“Por outras palavras, a doutrina também progride, dilata-se com o tempo, consolida-se e torna-se mais firme, mas sempre progredindo. A mudança desenvolve-se da raiz para cima, crescendo com estes três critérios”, assinalou o Papa Francisco, que deu exemplos concretos: “Hoje é pecado possuir bombas atómicas; a pena de morte é um pecado, não pode ser praticada, e antes não era assim; quanto à escravatura, alguns Papas antes de mim toleravam-na, mas hoje as coisas são diferentes. Portanto, muda-se, muda-se, mas com estes critérios.”

No entender de Francisco, a doutrina da Igreja Católica vai evoluindo no decurso da história, “sempre nesse caminho, partindo da raiz, com uma seiva que sobe e sobe, e é por isso que a mudança é necessária.” O Papa Francisco recordou também que “a compreensão do homem muda com o tempo, assim como a consciência do homem se aprofunda” e considerou que “as outras ciências e a sua evolução ajudam também a Igreja neste crescimento da compreensão”. Por outras palavras, “a visão da doutrina da Igreja como um monólito é errada”.

Nos Estados Unidos, têm-se multiplicado as críticas de muitos bispos  conservadores ao Papa Francisco, que o acusam de se desviar da linha oficial da Igreja Católica em assuntos como o aborto e a possibilidade de dar a comunhão a decisores políticos que, na sua vida política, não sejam frontalmente contra o aborto — um assunto que chegou mesmo a motivar uma guerra aberta entre os bispos americanos e o Presidente Joe Biden, na qual o Vaticano interveio em defesa de Biden.

Na guerra entre Joe Biden e os bispos, o Vaticano interveio para defender o Presidente dos EUA

Francisco diz que “há quem se ponha de lado” desta evolução natural da doutrina, preferindo andar “para trás”. “São aquilo a que chamo ‘retrocedistas’. Quando se anda para trás, forma-se algo fechado, desligado das raízes da Igreja e perde-se a seiva da revelação. Se não se muda para cima, retrocede-se, e então assumem-se critérios de mudança diferentes daqueles que a própria fé nos dá para crescer e mudar. E os efeitos sobre a moral são devastadores. Os problemas que os moralistas têm de enfrentar hoje são muito graves e, para os enfrentar, têm de correr o risco de mudar, mas na direção que eu dizia”, disse o Papa.

Francisco sublinhou que, neste “clima de fechamento” que se vive entre os mais conservadores, como nos Estados Unidos, há o risco de se perder “a verdadeira tradição” e a ideologia se intrometer nas questões da fé. “Por outras palavras, a ideologia substitui a fé, a pertença a um sector da Igreja substitui a pertença à Igreja.”

Papa não quer Igreja obcecada com “pecados abaixo da cintura”

O Papa Francisco foi também questionado sobre o discurso que tinha feito dias antes na cerimónia de acolhimento em Lisboa — a já célebre intervenção em que, de improviso, pôs meio milhão de jovens a repetir que a Igreja tem lugar para “todos, todos, todos” —, por um jesuíta que lhe perguntou como é que este discurso se traduz, na prática, perante pessoas homossexuais que se sentem parte ativa da Igreja, mas que se sentem excluídas pela doutrina oficial da Igreja no que diz respeito à homossexualidade.

“Penso que o apelo dirigido a ‘todos’ não tem discussão”, começou por clarificar Francisco. “Jesus é muito claro: todos. Os convidados não quiseram vir à festa. Por isso, ele disse para irmos às encruzilhadas e chamar todos, todos, todos. (…) Por outras palavras, a porta está aberta a todos, todos têm o seu espaço na Igreja. Como é que cada um o vive? Ajudamos as pessoas a viver de forma a poderem ocupar esse lugar com maturidade, e isto aplica-se a todo o tipo de pessoas.”

Um discurso que foi um recado a quem quer uma Igreja fechada à diferença. As entrelinhas do Papa na cerimónia de acolhimento

Francisco assumiu que “hoje em dia o tema da homossexualidade é muito forte, e a sensibilidade em relação a ele muda consoante as circunstâncias históricas”.

“Mas o que não me agrada nada, de um modo geral, é que olhemos para o chamado ‘pecado da carne’ com uma lupa, como fizemos durante tanto tempo em relação ao sexto mandamento. Se explorávamos os trabalhadores, se mentíamos ou fazíamos batota, não interessava, mas sim os pecados abaixo da cintura”, sublinhou o Papa. “Portanto, todos são convidados. É esse o ponto. E a cada um deve ser aplicada a atitude pastoral mais adequada. Não podemos ser superficiais e ingénuos, forçando as pessoas a coisas e comportamentos para os quais ainda não estão maduras, ou não são capazes. Acompanhar espiritualmente e pastoralmente as pessoas exige muita sensibilidade e criatividade. Mas todos, todos, todos são chamados a viver na Igreja: nunca se esqueçam disso.”

O Papa recordou o caso de uma freira que trabalha em Roma com raparigas transgénero que, um dia, lhe perguntou se as podia levar à audiência geral com o pontífice às quartas-feiras. Francisco respondeu-lhe que “claro” que as podia levar, “porque não?”

“A primeira vez que vieram, estavam a chorar. Perguntei-lhes porquê? Uma delas disse-me: ‘Não pensei que o Papa me pudesse receber!’. Depois, após a primeira surpresa, habituaram-se a vir. Algumas escrevem-me e eu respondo-lhes por correio eletrónico. Todos são convidados! Apercebi-me de que estas pessoas se sentem rejeitadas, e isso é muito duro“, lembrou Francisco.

Em resposta a uma outra pergunta, o Papa Francisco falou também sobre o modo como a Igreja se deve relacionar com a sociedade contemporânea, “erotizada”, com um grande foco na sexualidade. “No ano passado fiz um discurso – ou melhor, disse duas ou três palavras, e depois fizeram perguntas – a todos os padres que trabalham na Cúria. A maior parte deles são jovens. E a certa altura disse-lhes: ‘Aqui está uma coisa que vocês não dizem, que é a utilização dos telemóveis e a pornografia nos telemóveis. Quantos de vós veem pornografia no vosso telemóvel?’. Depois de eu ter dito isto, disseram-me que um deles comentou: ‘Vê-se que ele passou horas no confessionário'”, recordou Francisco.

“Quando eu era noviço, costumavam falar-nos da castidade, da santa castidade. Pediam-nos para não olharmos para fotografias um pouco audazes…, quer dizer, eram outros tempos. Tempos em que os problemas não eram tão graves e em que até estavam escondidos. Hoje, graças a Deus, a porta está escancarada e não há razão para os problemas ficarem escondidos. Se escondem os vossos problemas, é porque assim o querem fazer, mas a culpa não é da sociedade, nem tão pouco da vossa comunidade religiosa. Este é um dos méritos atuais da Companhia: não esconde os problemas, fala-se deles, tanto com o superior como entre vós”, acrescentou.

Francisco alertou também para o “problema grave” que são os “refúgios ocultos da procura de si mesmo, que muitas vezes têm que ver com a sexualidade, mas também com outras coisas”.

O clericalismo e o “mundanismo espiritual”

Questionado sobre o diálogo com o mundo contemporâneo, Francisco procurou separar as águas: a Igreja deve falar com o mundo, com a arte e com a a cultura, mas não deve deixar que o mundanismo penetre a Igreja. “Preocupa-me quando o mundanismo se introduz na vida consagrada”, disse Francisco, lembrando os apelos que tem feito contra o “clericalismo“, a perversão das lógicas de poder e autoridade dentro da Igreja.

“Vejam que o mundanismo espiritual é uma armadilha muito recorrente. É preciso aprender a distinguir: uma coisa é preparar-se para o diálogo com o mundo – como vocês fazem com o diálogo com o mundo da arte e da cultura – e outra coisa é comprometer-se com as coisas do mundo, com a mundanidade”, disse Francisco aos jesuítas, que em Portugal serão, possivelmente, um dos rostos mais visíveis do diálogo entre a Igreja e o mundo da cultura.

Mas atenção: é preciso dialogar com o mundo, porque não se pode viver em conserva. Não podem ser religiosos introvertidos, a sorrir para dentro, a falar para dentro, protegendo o vosso ambiente sem convocar ninguém. Portanto, é preciso sair para este mundo, com os valores e os desvalores que ele tem”, acrescentou ainda.

Perante uma pergunta sobre os principais problemas que afetam o clero e a Igreja, Francisco apontou novamente para a “mundanidade e o clericalismo”.

“É sobre estes dois pontos que gostaria de chamar a atenção do nosso clero. O clericalismo infiltra-se nos padres, mas é ainda pior quando se infiltra nos leigos. Os leigos clericalizados são assustadores. Respondo com esses dois espíritos, o mundanismo e o clericalismo, que podem fazer muito mal à Companhia”, disse Francisco.

Durante a conversa com os jesuítas portugueses, o Papa Francisco incentivou-os a viver entre os mais pobres. “Hoje vemos que a própria espiritualidade nos leva nessa direção, para um compromisso com os que estão à margem: não só à margem da religião, mas também à margem da vida”, disse Francisco. “A inserção entre os pobres ajuda-nos, evangeliza-nos. Santo Inácio obriga-nos a fazer um voto, o de não mudar a pobreza na Companhia, exceto para a tornar mais apertada. Há nisto uma intuição, um espírito de pobreza que creio que todos devemos ter.”

Questionado sobre as principais alegrias e tristezas que sente nos dias de hoje, o Papa Francisco apontou a preparação do sínodo sobre a sinodalidade como a sua grande alegria e a guerra — na Ucrânia e em muitos outros pontos do planeta — como a principal tristeza. “Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, as guerras são incessantes em todo o mundo. E hoje vemos o que está a acontecer no mundo. Escusado será acrescentar palavras.”

O Papa Francisco esteve em Lisboa entre os dias 2 e 6 de agosto, para presidir às celebrações da Jornada Mundial da Juventude, um acontecimento organizado periodicamente pela Igreja Católica em diferentes países do mundo. Estima-se que tenham estado em Lisboa cerca de 1,5 milhões de jovens de todo o mundo a participar na JMJ.