O novo patriarca de Lisboa, Rui Valério, fez este domingo a sua entrada solene como sucessor de Manuel Clemente à frente da diocese de Lisboa, numa celebração no Mosteiro dos Jerónimos em que lembrou as vítimas de abusos sexuais de menores, deixou apelos à paz na Ucrânia e dirigiu-se aos jovens, para que, com a fé renovada depois da Jornada Mundial da Juventude, possam ser protagonistas do futuro da Igreja Católica.
Durante a celebração, que teve na primeira fila o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o antigo Presidente Cavaco Silva, vários ministros e autoridades civis e militares, Rui Valério lembrou a “pureza da Igreja que, por vezes, muitas quiçá, alguns dos próprios filhos da Igreja lamentavelmente mancharam, fazendo exatamente o contrário, o oposto de quanto fez e determinou Cristo quando disse ‘deixai vir a mim as criancinhas, pois delas é o reino dos Céus!’”
“E quantas vezes o reino que essas inocentes vítimas conheceram não foi o dos céus, mas do abismo, do sufoco, da destruição, do trauma. A todos prometo proximidade e empenho na esperança da cura total”, disse ainda.
No início da intervenção, Rui Valério lembrou os três últimos patriarcas de Lisboa — António Ribeiro, José Policarpo e Manuel Clemente —, que serviu enquanto pároco, e deixou uma saudação especial ao cardeal Manuel Clemente, que terminou as suas funções e que, segundo a tradição, esteve ausente da celebração deste domingo nos Jerónimos.
“A este último, aqui manifesto um sentido agradecimento pelas perspetivas de abertura que soube incrementar na vivência da fé face à cultura e aos plurais dinamismos da sociedade, mas também um reconhecimento porque, desde a primeira hora do seu ministério patriarcal, imprimiu no ADN do Patriarcado, não só uma palavra, mas um movimento, uma ação de sair, de ir ao encontro”, disse Rui Valério.
“À grandeza da sua espiritualidade, devemos a eleição de Lisboa a posicionar-se, uma vez mais, como marco de um novo recomeço de vida cristã. A Jornada Mundial da Juventude não representou só um encontro de jovens do mundo inteiro. Foi essencialmente o desconfinamento espiritual da humanidade. E essa circunstância representa uma acrescida responsabilidade para não deixar esfriar a sua pujança, nem mutilar o ardor do seu dinamismo”, acrescentou.
Com a JMJ morreu o “clericalismo” na Igreja
Rui Valério alinhou o seu discurso com várias das ideias que têm marcado o pontificado do Papa Francisco, incluindo a necessidade de acabar com a “autorreferencialidade” da Igreja Católica.
“Só há verdadeiramente missão, ou seja, tal como foi com a entrada do Filho de Deus no mundo que o Verbo se fez Carne, também a missão da Igreja só vence os redutos limitadores da mera utopia e se torna acontecimento crístico se a Igreja empreender o caminho rumo à humanidade e com a humanidade”, afirmou Valério.
“Com razão alguns teólogos consideram que o Concílio Vaticano II constituiu uma revolução coperniciana, porque abraçou a dinâmica de uma Igreja descentrada ou, na linguagem do Papa Francisco, abandonou a conceção de autorreferencialidade. Caros irmãos, sair e ir a Jerusalém foi gesto, foi movimento, foi ação de amor. Igreja de Lisboa, a cidade, as vilas, as aldeias, as famílias, as pessoas, cada pessoa será onde os nossos planos se farão acontecimento de vida e de salvação”, acrescentou.
O novo patriarca de Lisboa sustentou ainda que a Jornada Mundial da Juventude, realizada na capital portuguesa na primeira semana de agosto, foi um sinal claro da “morte” destas formas antigas da Igreja.
“A grande esperança da Jornada Mundial da Juventude não residiu só, nem principalmente, na quantidade de jovens aqui reunidos, nem apenas no entusiasmo que, como auréola, iluminou aqueles dias, nem somente no elevado nível pastoral e evangelizador que todos nós tivemos a graça de testemunhar. Todos pudemos presenciar e testemunhar como também houve muito que morreu: morreu a vergonha de se ser Igreja, de viver enclausurado no medo de aparecer e de testemunhar a esperança que nos move, sim, é verdade, morreu a cultura do temor e ressurgiu uma Igreja de rosto erguido, sem medo de testemunhar que é na fé em Cristo que bebemos a fonte da nossa alegria e da nossa prontidão a servir, que é Ele que nos mobiliza a sair das inúmeras zonas de conforto para dar a cara pelas causas e pelo mesmo Cristo”, salientou Rui Valério.
“Sim, morreu a mentalidade individualista que consagrava o indivíduo como critério absoluto da história, para emergir um profético sentido de pessoa, que afirma que o ser humano é um ser em relação e que é na relação que se constrói a sua identidade de filho de Deus, de irmão de cada um e a sua parábola existencial”, acrescentou Valério. “Morreu ainda uma forma de ser Igreja, que o Papa Francisco apelida de clericalismo e renovou-se a consciência da comunidade cristã ser a totalidade do povo de Deus. A sinodalidade, que emergiu em cada onda, mostrou que, a partir da centralidade de Cristo, todos são chamados a participar da alegria da vida nova, e do amor aos irmãos. Na Igreja todos têm lugar e devem ser acolhidos, ouvidos e respeitados. E a Igreja está aberta a essa participação.”
O patriarca de Lisboa deixou ainda um forte apelo aos jovens que participaram na JMJ para que partilhem com a comunidade cristã aquilo que receberam durante a Jornada. “Caros jovens e leigos, hoje novamente, a Igreja necessita da vossa autenticidade, da vossa reta e pura intenção, por isso vos rogo, dizei-nos que recebestes vós nesse Cenáculo da JMJ e dizei-nos para onde quer Cristo que caminhe a sua Igreja de Lisboa”, pediu o patriarca.
“Suplico-vos, não podeis guardar para vós somente o que e o quanto recebestes no profético Pentecostes de há um mês. Reuni-vos novamente, promovei encontros entre vós e partilhai, como os apóstolos no Cenáculo, quando sobre cada um deles poisou o Santo Espírito de Cristo Ressuscitado, e dizei-nos a mensagem, partilhai a inspiração que foi derramada”, acrescentou, pedindo aos jovens que sejam protagonistas do futuro da Igreja Católica em Lisboa.
Paróquias não podem ser “lojas do cidadão” do espiritual
Rui Valério dirigiu-se também aos padres do patriarcado de Lisboa, presentes em grande número no Mosteiro dos Jerónimos, deixando um apelo à adoção do “serviço” não só enquanto “estilo” de ação para a Igreja, mas também como “identidade”.
“Sem a disponibilidade da entrega incondicional, para servir a Deus e aos outros, não há salvação possível, nem para o mundo, nem para a mulher, que se sentirá sempre diminuída na sua condição de mulher, nem para o homem que se sentirá sob os reptos de uma cultura consumista e concorrencial que lhe exige sempre mais a rentabilidade produtiva de uma máquina tecnologicamente avançada, nem para os vulneráveis e frágeis que sofrerão o atropelo dos poderosos”, disse o bispo.
“Caros irmãos e caras irmãs, acreditem-me, a esperança do mundo, e também da Igreja, não reside na expansão proselitista dos seus crentes, mas na sua capacidade de ser, ela própria, uma existência abnegada e totalmente dedicada ao serviço dos outros”, acrescentou.
Falando aos padres, Valério destacou que os sacerdotes têm “um carácter eminentemente relacional” e criticou as paróquias que funcionam como “lojas do cidadão”.
“Também em relação a nós, se realmente ambicionamos paróquias e comunidades cristãs que não sejam apenas estabelecimentos de serviço, tipo loja do cidadão com oferta do religioso, mas sim que sejam fontes de vida e esperança, de afetos e proximidade, então muito de tudo isso depende do modo como o sacerdote interpreta e realiza a sua existência, a sua pregação e a sua ação. Ser o que se diz e se faz. Fazer o que se é e se diz, e dizer quem se é e o que se faz — bem na esteira de Jesus Cristo — é promessa para comunidades que dão vida, enquanto se dão a si mesmas”, disse ainda.
O novo patriarca de Lisboa deixou ainda uma mensagem de paz para a Ucrânia. “A guerra na Ucrânia, como tantos outros conflitos mundiais já constituem, como diz o Papa Francisco, uma terceira guerra mundial aos pedaços, sintonizam-nos com a urgência da paz, uma vez que nos coloca perante a realidade de um contexto cultural atual altamente propenso para a conflitualidade”, afirmou.
“A lgreja de Lisboa tem tido, ao longo da sua história, um compromisso sério com a paz, onde se encontram não só enunciados de princípio, mas também gestos e profecia. Assim, em harmoniosa cooperação e estreita colaboração com as Autoridades do Estado, as Autarquias, Instituições civis, com as Forças Armadas as Forças de Segurança e num verdadeiro espírito ecuménico, vamos implementar no coração dos irmãos, na cidade, na relação das pessoas, no convívio das instituições, um autêntico ambiente de paz e de serenidade, pela promoção da justiça, pelo amor à verdade, e pelo empenho na solidariedade”, acrescentou.
Rui Valério tomou posse como 18.º patriarca de Lisboa na manhã de sábado, numa curta celebração litúrgica na Sé de Lisboa, na qual falou especialmente para o clero do patriarcado de Lisboa sobre os desafios que a Igreja Católica contemporânea enfrenta num mundo marcado por “um misto de espiritualidade buffet com fé self-service, em que se tenta dispensar os intermediários e se colhem das várias propostas fragmentos de conveniência”.
À saída da celebração, o novo patriarca de Lisboa falou da necessidade de acompanhar as vítimas sem “limites” e prometeu que será um “bispo da estrada”, procurando estar presente entre os fiéis.