Um dos momentos de maior relevância no que concerne à edição de poesia em Portugal no último ano prende-se necessariamente com a publicação do quarto volume — algo enciclopédico, em desordem e tumulto, se delineia neste projeto — de Mulher ao Mar (2010), de Margarida Vale de Gato, Mulher ao Mar e Corsárias (2023), seguindo Mulher ao Mar Retorna (2013) e Mulher ao Mar e Grinalda (2018), publicados pela editora Mariposa Azual. Um tal work in progress obriga-nos à sutura de uma primeira distinção: mulher ao mar, enquanto conceito e imagem de antecipação, por um lado e, por outro, mulher ao mar enquanto livro, rosto, uma outra forma de reconhecimento, jogo de precipitação, do qual difícil será dissociar, isto é, saber de cor (com o coração), determinados instantes poéticos.

Dir-se-ia que o efeito produzido é o de uma tatuagem, por des-ilusão, isto é, pela permanente construção de fantasias impossíveis de despir, mas igualmente vedadas ao simples acrescento, fazendo com que a forma, tantas vezes nitidamente espraiada de determinadas imagens volva, no contexto associativo de outras, plano abstrato, arquitetura (do) impossível. O acessório é impossível nos termos de uma poética da ilusão, próxima da ironia, na qual se trava um jogo em que uma parte procura persuadir a outra de que a sua posição, ideal ou sentimental, da do outro em muito difere, dispensando assim tudo o que não faça parte da posição convicta, desde a qual se travam conflitos, a começar por esse de um sentimento de despertença responsável por um estado tenaz na relação com o outro, esse estar do lado de fora possibilitador, no limite, do trabalho poético:

Portanto sirvo mal, sou outra, fora/do baralho, turista aqui em tanto//do que me dá prazer e algum trabalho.” (16)

Não havendo costuras exatas nas quais conciliar uns com os outros textos — resistência que os livros apresentam pela imposição cega, segura de tessituras poéticas laboriosas — algo se desfaz invariavelmente, em salto, de um para outro livro, de um para outro poema, como esses sonetos cujos versos últimos dão o primeiro verso da composição poética seguinte. Uma tatuagem, a imagem formada contra o tempo, assim salvaguardando a própria atualidade impressionista, com duas faces: a da expectativa imaginativa e a da experiência sensível do imaginado, não desvirtuando a possibilidade de esta última se realizar em face daquilo que não fora concebido num primeiro instante. Será, nesse sentido e potencialmente, um lance em negativo, a que não falta rigor, pois “em prumo/à brisa te lanças” (83), fazendo associar, por um esforço de análise dos diversos devires interiores em curso, o rigor à liberdade. O rigor, aliás, como meio de libertação, ao jeito desse “esquecimento que se destrinça da indiferença e nos dá/deslumbrarem-nos coisas que passam sem anterior recordação” (40).

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À vulgata da significação de um projeto em curso enquanto reelaboração de um motivo, sucessão de acrescentos nessa sequência compostos, Margarida Vale de Gato parece apontar mais justamente na direção de um exercício de abdicação, na composição deste “marmóreo fóssil/de onde veios brotam” (89). Se não se trata do acrescento indiscriminado de texto e a revisão forçada de poemas anteriores, também não se poderá falar da realização de cortes, como regra de composição, nem do permanente reajustamento do livro como um puro trabalho de maquete, no qual se intentasse, numa aposta contínua, alcançar a forma sintetizada, ou antes melhorada, de uma versão anterior. Nada se configura enquanto plano, e se há anterioridades originais, a sua primazia cronológica e/ou simbólica é inviabilizada, por meio de demonstrações de um engenho verbal apurado, para o estado preferível da dedicação (que pode ou não assumir a forma da dedicatória), como humilde e criativa espontaneidade em face do diverso, próxima da justiça que, para mais justa ser, deve encontrar-se fora do terreno discursivo interrogativo, apostando todavia na particularização de agências e figuras, “Trato com ele a justiça que suscita/o que reconhecemos e não nos interroga.” (35), condicente com a mudez desperta para a memória, “Por ele, sem que tenha esquecido,/disciplinei o corpo a emudecer.” (34) [destaques meus]. É clara a necessidade, como ardor vital, de acompanhar o movimento do verso, como o movimento da vida feita de encontros e desencontros, como aquele cujo acontecimento (por oposição à ideia do plano) não depende substancialmente do sujeito que sobre ele pensa, e que apõe nomes, títulos, monta um índice. Todas essas formas de reconhecimento são desde logo formas de rememoração, sinais de um circuito necessariamente perdido, o rastilho de um gozo de que apenas ficou a fundura magoada na pele, o traço, socalco e intervalo: “eu própria/dano sem socorro mouro meu morro e mal/digo” (45).


Título: “Mulher ao Mar e Corsárias”
Autora: Margarida Vale de Gato
Edição: Mariposa Azual
Páginas: 240

Sem nos atermos à etimologia como recurso a uma instância supostamente perfeita, totalidade perdida, será proveitoso perceber o que nos diz, da raíz latina, essa palavra, abdicação, cujo sentido mais comum compreende o cunho moral da libertação de um bem em prol de uma virtude superior – abdico disto para ter aquilo, procurando valor e conduta mais justos. Declinando a oferta dúbia de uma simetria total que da dispensa de qualquer coisa comportasse a plena aceitação, a dádiva, de outra, recuperemos a composição do termo abdicação, registando a conciliação entre os termos do afastamento (pela partícula “ab”) e da proclamação, do dizer (de “dicere”), para registar o gesto de abdicar como ato, antes de mais, sobre o dito ou, no caso, o dito que ainda assim resiste, como realidade, no não-dito ou, como no poema “A Malinche”, numa espécie de bastardia: “nada de nativo me era congénito.//Eu pude ser real na abdicação.” (18). Um afastamento da fala, um recuar da língua, a envolvente, e sensual, abdicação do corpo quando informa, em prol de um trabalho de medição, o júbilo de escandir, tanto sob o critério do prazer como da dor, como ainda do trato com uma tradição literária, uma linhagem que serve de índice ao conjunto de inéditos desta edição, com nomes de autoras e personagens a dar título aos poemas: “Maya Deren”, “Hélia”, “Pizarnic”, entre outros. A uma impossibilidade de dizer, a abdicação converte-se na atenção sobre os suportes da palavra, o lugar da enunciação, o recetáculo da letra e da voz, de que o corpo é um dos mais altos exemplos, “cântaro de palavras mais velozes do que a voz” (14), uma “oficina/com um escopro ou um compasso” (34), a prisão em que “a poeta escreve sempre” (72), “permiti-o a linguagem” (idem), “afeito prisma” (75).

Nota-se, desde o início, uma separação clara entre o corpo que experiencia e a cabeça que pensa, posteriormente e já de um modo aproximado, e daí falível, muito embora não só não dispensando o corpo, como vendo-se mesmo forçado a ele regressar para conseguir elaborar uma reflexão (que, a mais das vezes, rejeita a grande conclusão ou a proposição dedutível). A divisão entre corpo e mente não serve a configuração platónica que distinguisse o mundo interior da consciência e o exterior do sensível. A divisão entre um e outro planos acontece transversalmente a um contínuo a que atribuiremos a palavra de ordem da possibilidade. Em face de um mundo menos suscetível a sistematizações narrativas, no qual o epicentro é o único lugar habitável, o possível torna-se a propriedade mais intrínseca descritível. A possibilidade como pura exterioridade, plano da elaboração poética, não raras vezes fazendo coincidir as ideias do cerco com a do enredo, como silêncio cheio, o inenarrável apesar de tudo proferido, aliás, inenarrável precisamente na breve articulação verbal que lhe couber:

este tão pouco clemente/excesso de imponência este ser de cerco e corrente que/cerra este rondar de rapina por cima de penedos este/para sempre só/e solo inenar-/(r)ável até à água.” (45)

Trata-se aqui de um gesto mais complexo, e que secundariza, face a outros prismas mais prementes, a questão do volume do trabalho, não obstante uma pulsão serial motorize igualmente este projeto poético. Pulsão serial não servindo a megalomania da ilusão cíclica de uma infinitude, mas sim um jogo de caça, vida escandida em mais vida, na crueza e impiedade de uma voz obediente a certos vícios e paixões em face dos quais a afasia condiz com a expressão poética, como posição provisória:

nada/seguindo a trilha de barriga/de gatas de rojo nas rochas réptil//no poço do firmamento, ridícula” (44)

A serialidade advém essencialmente de um carácter temporal a que os poemas se encontram subjugados e que pode tanto manifestar-se pela evocação de figuras literárias tradicionais, do género romanesco, tais como a “donzela” e o “varão”, como ainda por via de uma quebra do verso, a queda abrupta de uma ideia e imagem para outras, como que sugerindo um fluir e um ímpeto incompreensíveis e, assim, aderindo à mecanicidade fragmentária da escrita, inscrição gráfica dinamizada pela nossa leitura, como aceso acordo no mistério do indesvendável.

De Dante, da sua obra e mais especificamente da Comédia, disse Auerbach que “em nenhum lugar a mistura de estilos chega tão perto da quebra estilística”, no estilo elevado da língua vulgar, o que não obsta à ruptura da “moldura” pela “supremacia dos quadros que envolvia”. Cultora de sonetos, imperativa herdeira de Dante, Margarida Vale de Gato, que concilia igualmente linguagem erudita com termos da gíria, aposta numa poesia oscilante entre a medida da métrica em esmero e a rutura do verso como princípio articulador, e que, à maneira do comentário de Auerbach ao estilo aguçado de Dante, provoca a desfeitura da moldura, levando-nos antes de mais a perguntar o que de facto permanece dessa “supremacia de quadros”. E que quadros, de que natureza? Parece que a esta pergunta não basta uma resposta unívoca, porquanto a própria ideia de “quadros” se encontra radicada numa condição móvel e plural, senão mesmo múltipla. A dimensão pictórica do quadro realiza-se por uma inclinação do olhar, experiência visual do leitor, que no momento em que olha e decifra o poema se vê tanto tolhido pelo silêncio da receção de estímulos, quanto, por outro lado, nesse silêncio não pode resistir senão opondo-lhe, e propondo-lhe, novas formas. Eis um trabalho poético exaustivo e o elogio à escansão de uma língua refundada a cada composição: de uma “palavra de arremesso” (49), “soletraremos as estrelas” (77). Mas são, ao fim e ao cabo, as estrelas que nos soletram, que nos falam e nos escandem. Resta saber em que língua o fazem, e alavancar o susto anterior que nos torne (e)legíveis ao grande “desperdício” (114) do mundo: o “perdimento explícito” (95) saber acolher.