O ministro dos Negócios Estrangeiros e antigo ministro da Defesa João Gomes Cravinho não se considera debilitado politicamente com os sucessivos casos que têm vindo a público no âmbito do processo “Tempestade Perfeita”, disse à Lusa.
“Não, claro que não”, respondeu Gomes Cravinho, ao ser questionado pela Lusa sobre se a sucessão de notícias acerca dos casos da Defesa, no processo “Tempestade Perfeita”, o debilitam politicamente como ministro.
Em entrevista à Lusa em Nova Iorque, na noite de sexta-feira, o ministro abordou ainda a notícia publicada esta semana pelo jornal Público, que dava conta de que Cravinho – à época ministro da Defesa – teria conhecimento de um outro processo contra Alberto Coelho, figura central no caso da derrapagem de mais de dois milhões de euros nas obras de reabilitação do antigo Hospital Militar de Belém, quando o nomeou para um cargo numa empresa do Estado.
Gomes Cravinho, que se encontrava em Nova Iorque para participar na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) quando a notícia foi publicada, admitiu que não teve “tempo nem interesse” para se inteirar sobre essa matéria, à qual não atribuiu grande relevância.
“Vou ser-lhe muito franco. Eu tenho estado 100% ocupado com a Assembleia Geral das Nações Unidas. (…) Eu vi a notícia do Público, li na diagonal porque não tive tempo e nem tive suficiente interesse ou preocupação em me dedicar ao assunto, naturalmente porque percebi que não é uma matéria, enfim, muito relevante“, disse.
“Naturalmente, para a semana vou olhar com mais atenção e aí darei uma resposta mais completa. Mas não é matéria que me tenha ocupado minimamente durante esta semana”, acrescentou.
Em agosto, o Ministério Público acusou 73 arguidos no processo relacionado com adjudicações de obras pela Direção-Geral dos Recursos da Defesa Nacional (DGRDN), entre os quais o ex-diretor Alberto Coelho, por corrupção passiva, branqueamento, peculato e falsificação de documento.
A acusação relativa ao processo “Tempestade Perfeita”, a que a agência Lusa teve acesso, pede que Alberto Coelho seja condenado a pagar ao Estado mais de 86 mil euros, que correspondem ao que consideram ter sido as vantagens obtidas de forma ilícita.
Gomes Cravinho descarta responsabilidade pela derrapagem no custo das obras do Hospital de Belém
Candidatura alemã ao Conselho de Segurança é “incómoda”
O ministro dos Negócios Estrangeiros reconhece que a candidatura alemã ao Conselho de Segurança da ONU, quando Portugal e Áustria já haviam avançado para os dois lugares europeus em disputa, é “incómoda” por “obrigar países amigos a escolherem entre amigos”.
João Gomes Cravinho referiu que, para as duas vagas de membros não-permanentes no Conselho de Segurança em 2027-2028, Portugal e Áustria tinham uma candidatura chamada ‘clean slates‘, em que há dois candidatos para dois lugares.
“E é isso que acontece na generalidade dos diferentes grupos regionais: apresentam um candidato para um lugar ou dois candidatos para dois lugares. No nosso caso, de forma relativamente tardia, a Alemanha apresentou uma candidatura, porque a Alemanha considera que, sendo um país grande e poderoso, deve estar com grande regularidade no Conselho de Segurança. E isso é incómodo porque obriga a países amigos a escolherem entre amigos”, avaliou o ministro.
Nesse sentido, Portugal terá como adversários diretos a Alemanha e a Áustria, numa disputa pelos dois lugares de membros não-permanentes atribuídos ao grupo da Europa Ocidental e Outros Estados.
A eleição em causa para o Conselho de Segurança – órgão das Nações Unidas encarregue da manutenção da paz e da segurança internacional – acontecerá em 2026, para o biénio 2027/2028.
Gomes Cravinho salientou que a Áustria e a Alemanha são “países amigos” que Portugal “respeita profundamente” no sistema internacional e com os quais “com grande frequência”está do mesmo lado “nos debates sobre questões internacionais”.
Tendo essa relação em conta, a campanha portuguesa não se baseará em qualquer abordagem crítica a esses Estados amigos, apostando, ao invés disso, em “argumentos únicos” que Áustria e Alemanha “não têm”.
“São esses argumentos que formam a base para a nossa campanha, como (…) o nosso compromisso em relação aos Oceanos. Isto não é algo que nasceu ontem, não é algo que foi produzido para efeitos de campanha (…) para angariar votos. É um compromisso profundo da política externa portuguesa, enraizado na história de Portugal ao longo dos séculos, muito enraizado também naquilo que tem sido o trabalho multilateral feito por Portugal na última década”, sublinhou o ministro.
“Este é um momento de olhar também para a problemática dos Oceanos e da Segurança, nomeadamente porque a subida do nível do mar e o aumento de temperatura dos oceanos produzem impactos em termos de segurança que são profundos para alguns países (…). Para muitos países costeiros, países insulares, são questões de primeira ordem em termos de segurança”, adiantou Cravinho, admitindo sentir enorme recetividade de outros países em relação a esse argumento.
Outro exemplo da singularidade da candidatura portuguesa, afirmou, é a sua capacidade se relacionar “com países e povos nos quatro cantos do mundo”, algo que é referido por “interlocutores da Ásia, do Pacífico, que fazem referências históricas de Portugal” quando se encontram com Gomes Cravinho, contou.
“Nós não somos um elemento desconhecido do sistema internacional que aparece de repente para pedir um voto. Somos, pelo contrário, uma entidade cujo trabalho reconhecem”, frisou.
Também as qualidades “universais e humanistas” do secretário-geral da ONU, António Guterres, como português, podem pesar a favor de Portugal no momento dos Estados-membros das Nações Unidas irem a votos.
Guterres “desempenha o papel que desempenha em parte porque tem as melhores qualidades que se encontram num português: qualidades universais, uma abordagem universalista, humanista. E, portanto, eles (países) olham para nós, de algum modo, da mesma maneira como olham para António Guterres: como alguém que fala com todos, procura escutar, ouvir e compreender e, com base nisso, construir bases para entendimento”, advogou Cravinho.
A candidatura de Portugal foi formalizada em janeiro de 2013 e as eleições para o referido mandato realizar-se-ão durante a 81.ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2026, ano em que António Guterres terminará o seu segundo mandato de cinco anos como secretário-geral da ONU.
Portugal já foi membro não-permanente do Conselho de Segurança da ONU por três vezes: em 1979-1980, 1997-1998 e 2011-2012.
Por sua vez, a Alemanha – que ambiciona um assento permanente no Conselho de Segurança – já integrou o órgão por seis vezes (mais recentemente em 2019-2020), e a Áustria conseguiu ser eleita em três ocasiões.
Assembleia Geral da ONU marcada por “situação sombria” do multilateralismo
O ministro dos Negócios Estrangeiros considerou que a “crise” do multilateralismo e a “situação sombria” que o mundo atravessa marcaram a 78.ª Assembleia Geral (AG) da ONU, apesar de avanços como a assinatura do Tratado do Alto Mar — e qualificou o momento de “um pouco paradoxal”.
“A situação é evidentemente sombria. O multilateralismo está em crise. Isto é: está em crise a ideia de que nós podemos, através dos nossos compromissos em instâncias multilaterais, particularmente nas Nações Unidas, resolver os problemas com que nos confrontamos. Mas, por outro lado, ninguém tem outra solução. As outras soluções que aparecem são todas muito piores. E aquilo que se verifica é que, apesar da crise do multilateralismo, vai-se avançando em alguns dossiês”, disse Cravinho.
Nesse sentido, o ministro identificou a assinatura, na quarta-feira, do Tratado do Alto Mar por mais de 40 países, entre eles Portugal, como o ponto alto da semana da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), assim como “o mais importante avanço do multilateralismo” da última década.
“Tem a ver com a sobrevivência do planeta, tem a ver com os nossos compromissos em relação às alterações climáticas, tem a ver com o nosso compromisso em relação à espécie humana, além de tudo aquilo que está no mar. Foi possível avançar, portanto, num tema que representa talvez o mais importante avanço do multilateralismo desde há uma década”, afirmou.
No lado oposto a este progresso alcançado, Cravinho apontou a paralisação do Conselho de Segurança da ONU devido ao facto de um dos seus membros permanentes ter violado de forma flagrante a Carta das Nações Unidas: “estou a referir-me, naturalmente, à invasão da Ucrânia pela Rússia”, disse.
“Portanto, são momentos paradoxais que se vão vivendo. E eu creio que aquilo que é fundamental é que, num quadro em que vivemos tempos difíceis, (…) confiar no futuro. Temos de confiar na nossa capacidade de raciocinar e avançar coletivamente. Felizmente, é isso que o secretário-geral da ONU [António Guterres] faz todos os dias. E creio que merece todo o nosso respeito por continuar a manter viva a chama do multilateralismo”, acrescentou o ministro.
Tal como no ano passado, a Assembleia Geral da ONU voltou a ser marcada pela guerra na Ucrânia e pelos vários problemas a ela associados, como o abandono por parte de Moscovo do Acordo dos Cereais do Mar Negro – que possibilitava a exportação de alimentos a partir dos portos ucranianos.
Questionado pela Lusa sobre se vê a possibilidade de esse acordo ser reatado, o ministro negou, advogando que a Rússia tem interesse em manter a paralisação dessa iniciativa.
“Por um lado, a Rússia tem um interesse nisso, na medida em que é ela própria um grande exportador de cereais e, portanto, vê com algum agrado a subida dos preços de cereais nos mercados internacionais. Por outro lado, considera que deve fazer tudo para evitar qualquer receita para os ucranianos e naturalmente que não está minimamente preocupada com os efeitos sobre outras partes do mundo, nomeadamente no continente africano, muito dependente de cereais da Rússia e da Ucrânia”, afirmou.
“Não tivemos da parte da Rússia qualquer postura de abertura ou de maior ativismo num sentido de procura de soluções internacionais. O que tivemos foi a presença de um país (…) reconhecido por todo o mundo como violador da Carta da ONU e do direito internacional, a produzir argumentos absolutamente falaciosos sobre a sua invasão da Ucrânia”, criticou Gomes Cravinho.
À margem do debate anual da ONU, o líder da diplomacia portuguesa manteve uma reunião bilateral com Yván Gil, o seu homólogo da Venezuela, país com o qual Portugal tem tido vários diferendos.
“Temos vários temas a trabalhar em comum. Temos uma comunidade portuguesa muitíssimo importante na Venezuela. Temos preocupações em relação à normalização da situação política interna. E, nessa medida, naturalmente nós não podemos estar de acordo com tudo aquilo que acontece na Venezuela”, disse.
“Vejo o meu colega venezuelano como um interlocutor com quem trabalho com respeito – mesmo discordando – na procura de soluções, particularmente que sejam boas para a nossa comunidade”, acrescentou o governante.
Ainda na última semana, Portugal integrou a lista de 32 países costeiros do Atlântico – de quatro continentes – que adotaram uma Declaração sobre a Cooperação Atlântica. Entre os subscritores estão também Angola, Brasil, Espanha, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Portugal, Reino Unido e Estados Unidos.
Em comunicado, o Governo norte-americano informou que os países signatários partilharam o compromisso de “uma região atlântica pacífica, próspera, aberta e cooperante”, abordando conjuntamente “desafios como pirataria, crime organizado transnacional, pesca ilegal, alterações climáticas, poluição e a degradação ambiental”. Como exemplo do espírito de cooperação atlântica, o Governo dos Estados Unidos indicou, entre outros, o ‘Atlantic Center’ nos Açores, como uma “plataforma central para análise de políticas inovadoras e pan-atlânticas, diálogo político e capacitação”.
De acordo com Cravinho, esta Declaração do Atlântico, com uma forte liderança dos Estados Unidos, representa “um alargamento para o âmbito científico do trabalho que está a ser feito no quadro do Atlântico”, acrescentando que Estados Unidos têm uma afetação de 10 milhões de dólares (9,37 milhões de euros) para o trabalho neste quadro.