“This is my meal. I call this girl dinner.” (“Esta é a minha refeição. Chamo-lhe girl dinner.”) A probabilidade de fazer um curto scroll pelo TikTok e encontrar um vídeo acompanhado por estas frases é bastante alta. Já desde os meses de verão que é uma das maiores tendências da rede social, com a música característica a somar mais de 420 mil utilizações e a hashtag #girldinner a chegar recentemente aos dois mil milhões de visualizações.

O conceito é simples: os utilizadores (que se identificam como mulheres, neste caso) partilham um vídeo em que filmam a refeição que fazem ao jantar. Em vez de ser um prato completo com uma porção de proteínas, hidratos de carbono e vegetais, como provavelmente já estamos habituados, é a clássica refeição de desenrasque. Um prato de bolachas de arroz com abacate, uma tigela de massa com queijo ralado ou até uma simples chávena de café são todos exemplos do que, no TikTok, é considerado girl dinner.

Tudo começou a 12 de maio de 2023, quando Olivia Maher, que publica casualmente vídeos na rede social, trouxe o assunto à baila. A rapariga menciona um outro vídeo, em que alguém critica a má qualidade das refeições ditas “medievais”, como pão e queijo. Maher surge em defesa do exemplo, que diz ser a sua “refeição ideal”. Enquanto mostra aos espectadores uma mesa com uma fatia de pão, queijo, uvas e um frasco de pickles, diz as palavras que viriam a ecoar na internet durante meses: “Chamo-lhe girl dinner”.

@liviemaher

#girldinner #medievaltiktok

♬ original sound – Olivia Maher

Desde esse primeiro vídeo, já surgiram centenas de milhares de jovens a seguir o exemplo e a partilhar as refeições que associam à de Maher. E porquê? Porque é que há tantas pessoas a aderir a esta tendência online e a participar no movimento? A questão, nesta época de auge do TikTok, pode parecer obsoleta. Afinal, a partilha e o alcance são precisamente os propósitos para que estão construídos os algoritmos das redes sociais. Porém, para Ivone Patrão, Professora do ISPA, há, no girl dinner, uma evidência do “cariz de isolamento” da tendência. Em entrevista ao Observador, a professora e psicóloga realça que “as refeições são o momento em que podemos partilhar com outras pessoas”. Ainda assim, há centenas de milhares de jovens que parecem não usar essa desculpa e optam por jantar sozinhas. Embora seja uma preocupação que surge da análise destes vídeos, é improvável que seja uma necessidade que leva, conscientemente, à publicação do girl dinner.

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@reinaaris

Pick me energy

♬ original sound – karma carr

Há, sim, quem aponte uma razão para o sucesso desta tendência: é um movimento de libertação feminina. A perspetiva, partilhada por algumas utilizadoras do TikTok, é que, socialmente, a tarefa de planeamento e confeção de refeições tende a recair sobre as mulheres. Ao recusar cozinhar um jantar completo, mesmo sendo só para si mesma, a mulher está a libertar-se dessa responsabilidade. Para Ivone Patrão, a ideia deixa alguma dúvida: “Não sei se as pessoas estão a fazer isso nesse sentido da libertação”. A professora faz uma comparação a um estudo feito às alterações de humor durante a pandemia, que concluiu que “as mulheres estavam mais ansiosas e deprimidas. Uma das justificações que demos foi que tiveram de ativar os papéis” de cuidadora dos filhos e da casa, enquanto mantinham um emprego. Ainda que encare a hipótese com alguma dúvida, diz que “teria de se perceber se estão numa zona de sobrecarga relativamente aos papéis que assumem, se isso traz alterações ao seu estado emocional e se isto é uma forma de se libertarem”. Já Rita Espanha, Professora no ISCTE e investigadora do CIES-ISCTE na área da comunicação e da saúde, defende que a tendência do girl dinner pode estar “relacionada com a ideia de um certo pragmatismo que pode ser associado às mulheres”. Isto é, a ideia, também ela preconceituosa, de que “as mulheres valorizam outro [tipo de refeições], mais leves e/ou requintadas (no caso do queijo e vinho)”.

@imsupergraceful

ingredients household core

♬ original sound – karma carr

A verdade é que, na grande maior parte dos vídeos de girl dinner mais vistos no TikTok, as refeições partilhadas são pratos com quantidades pequenas de comida e até pouco diversificadas. Ivone Patrão alerta que “é importante ter a avaliação de uma nutricionista para perceber que tipo de refeições são estas, se são pobres ou não do ponto de vista nutricional”. Ainda que alguns destes jantares possam passar por saudáveis, há determinadas iguarias publicadas na rede social que são, com pouca margem de dúvida, refeições insuficientes. É o caso de uma tigela de queijo ralado ou de um copo de vinho branco. Nestes casos, a sátira entra num domínio mais ambíguo que se pode tornar perigoso para os espectadores mais jovens.

Depois dos infames anos 2000 e da cultura de dieta que assoberbou tantas jovens mulheres, é natural que estejamos um pouco mais alerta para os perigos da influência nos hábitos alimentares. Rita Espanha reforça que “todos os comportamentos menos saudáveis que são divulgados de forma sistemática nas redes sociais têm o potencial de afetar os comportamentos dos utilizadores”. A socióloga compara, ainda, a um movimento igualmente perigoso para os homens: “O ‘Breakfast of champions’, que insinuava que era apropriado para homens e se referia a pequenos-almoços pouco saudáveis, que incluíam cerveja e junk food”.

@gooseygains

♬ Everybody Wants To Rule The World – Sped Up Version – Tears For Fears & Speed Radio

Para Ivone Patrão, o risco é bastante claro, já que “este tipo de tendência pode surgir como um gatilho”. Isto é, especialmente em jovens adolescentes, a “imagem corporal pode ser um fator determinante” para o bem-estar e para a sensação de pertença a um grupo social. Se pensarmos na “importância que dão à alimentação associada ao peso, então, nem que seja por curiosidade, este tipo de vídeos acaba por ser um trigger”. Não quer isto dizer que mulheres a partilhar os seus jantares desenrascados podem fazer com que alguém desenvolva uma perturbação do comportamento alimentar. O processo, obviamente, é bem mais complexo do que isso. Ainda assim, a psicóloga destaca que “aqueles que estão mais vulneráveis e estão preocupados com questões da dieta” estão mais expostos à influência. O perigo do girl dinner não é, diretamente, o desenvolvimento de comportamentos pouco saudáveis. O risco passa pela normalização e aceitação de refeições que podem não ser as mais adequadas. Nas palavras de Ivone Patrão, “havendo esta influência do grupo, pode passar para uma zona de ‘ok, então é válido fazermos refeições assim’”.

@sel.ann

#girldinner #cheese

♬ original sound – karma carr

Um scroll pela hashtag que define esta tendência mostra a diversidade de quem adere. Há mulheres adultas, nas casas dos 20s e 30s, mas também adolescentes bem mais novas a partilhar o seu girl dinner. Tal como praticamente qualquer tendência online, o risco é significativamente maior para os mais jovens, que estão mais sujeitos à influência. A psicóloga reforça que, para minimizar o perigo, a solução pode passar pela supervisão parental e pelo desenvolvimento de um “juízo crítico relativamente a comportamentos online que não são adequados”.

@agnes777e

No but i literally eat this everyday it’s so good for no reason #girldinner #dinner #salad #heathyrecipes #thatgirl #fypシ #healthandwellness #thisismymealicallthisgirldinner

♬ original sound – karma carr

Mas calma, nem tudo o que diz respeito à partilha da alimentação das mulheres na internet é necessariamente mau. Graças à enorme oferta de conteúdos no TikTok, o girl dinner também traz vídeos cómicos e pedagógicos, como “quando uma nutricionista aproveita para dar dicas de como um girl dinner bem calibrado pode ser uma refeição muito completa”, explica Rita Espanha. A socióloga reforça, ainda, que “a evolução que [a tendência] tem tido reflete uma certa preocupação de divulgar uma oportunidade de realizar boas refeições com o ‘espírito’ do girl dinner