Por alguma razão tinha a alcunha de El Loco, por alguma razão deram o seu apelido à regra que passou a proibir que os guarda-redes agarrassem atrasos com o pé dos companheiros. Com 57 anos, algumas coisas não mudam e uma delas é a maneira de ser de René Higuita, mítico guarda-redes colombiano que ficou (ainda mais) conhecido depois da famosa defesa de escorpião feita num encontro particular em pleno Estádio de Wembley frente à Inglaterra num remate do médio Jamie Redknapp. Defendia, jogava com os pés, dava espectáculo e de quando em vez ia lá à frente marcar golos vistosos de livre direto com aquela imagem de marca dos cabelos compridos e encaracolados que ficaram como imagem de marca da primeira geração de ouro do futebol colombiano que foi a três Mundiais consecutivos e alcançou por duas vezes seguidas as meias-finais da Copa América. Pelo meio, esteve preso e foi suspenso. A seguir, fez de tudo um pouco.

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Formado no Millonarios, Higuita destacou-se na Liga colombiana ao serviço do Atlético Nacional, clube que representou entre 1986 e 1997 com uma interrupção de alguns meses para jogar nos espanhóis do Valladolid, naquela que foi a única experiência europeia na carreira. Ainda passou pelo México (Veracruz), pelo Equador (Aucas) e pela Venezuela (Guaros), mas foi no seu país que passou a maior parte do percurso entre outros conjuntos como Independiente Medellín, Real Cartagena, Atlético Junior, Deportivo Pereira ou Deportivo Rionegro, terminando a carreira em definitivo em 2009 com 43 anos após algumas pausas por castigo como aconteceu entre 2004 e 2007, neste caso por ter acusado cocaína num teste feito no Equador. Ainda assim, foi na seleção que teve o maior reconhecimento, numa geração que marcou uma década no futebol.

Agora, mantêm-se os cabelos longos encaracolados, o aspeto bonacheirão e a língua afiada nas entrevistas raras que vai dando. Treinador de guarda-redes do Atlético Nacional, depois de passar na mesma função pelo Valladolid e pelo Al Nassr (esse mesmo, o conjunto saudita onde está agora Cristiano Ronaldo e que teve o colombiano como técnico de guarda-redes entre 2011 e 2016), Higuita falou com o As da Colômbia e abordou todo o percurso até aqui, incluindo as ligações a Pablo Escobar que o levaram até à prisão.

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“Tudo é um processo mas foi um dos maiores ensinamentos que tive. Não foi fácil mas é preciso seguir esse caminho de passar momentos difíceis para aprender. Tive a sorte e o azar de intermediar uma situação em que uma rapariga tinha sido sequestrada, levaram-me lá porque não era um político mas a família e a consciência deram-me esse poder. Acabei preso e fiquei lá nove meses. Conhecia gente boa, gente má, gente amiga. Aprendi a receber todos, ali fala-se de família e de amor. Fui pastor de narcotraficantes, violadores, guerrilheiros e militares, que encontraram ali o que não encontraram com outras pessoas. Fui o amigo que nunca tiveram”, contou sobre o momento em que esteve detido, em 1993, na sequência de um caso relacionado com um sequestro do grupo do narcotraficante Pablo Escobar em que foi intermediário.

O antigo guarda-redes falou também da capacidade que mostrava para jogar com os pés, traçando um perfil de comparação com os tempos que correm. “Fazia isso porque tínhamos uma equipa que jogava bem futebol. Chegaram a dizer que era louco e palhaço mas aquilo que fazia ficou plasmado como leu da FIFA. Identifico-me com Pep Guardiola e com as suas equipas. Todos têm as suas táticas mas acho que hoje estaria a jogar numa equipa de Guardiola. É o que se quer hoje, encontrar mais jogadores livres e isso começa logo na defesa”, destacou o agora treinador, que recordou com saudades os tempos na seleção da Colômbia.

“Internamente somos felizes pelo que fizemos pelo futebol com todos os erros que possamos ter cometido. O mais importante é que reconheçam aquilo que tu fizeste, que te reconheçam porque se identificam contigo. Há pessoas que se acham perfeitas, que acham que não cometem erros, mas a perfeição não existe. Hoje, com a idade que tenho e com tudo o que passei, gostava de não ter passado por muitas coisas que passei mas ao mesmo tempo que foi preciso fazer esse caminho para chegar à pessoa que sou hoje. Só me resta reconhecer tudo o que fiz e tentar sempre um exemplo para a minha família e a todos os que queiram o meu testemunho. Hoje fazemos uma coisa e amanhã já não somos os mesmos”, referiu. “A defesa de escorpião? É trabalho. Lembro-me que diz isso numa publicidade, que depois comecei a treinar antes dos jogos, as pessoas foram pedindo para fazer e comecei a trabalhar nisso até decidir que ia fazer”, acrescentou.

“Se o mundo precisa de mais loucos? Sim, o mundo precisa de mais loucos. Até os génios que estão agora a aparecer aprenderam com os loucos, por isso devem acreditar um pouco mais neles”, concluiu René Higuita, que também tem a sua história escrita num documentário da Netflix, que conta o caminho das origens mais humildes em Medellín até ao estrelato no futebol entre todos os episódios controversos.