A notícia cai pouco antes das 14h00, depois desse pijaminha de marmelo e gelado e leite creme — ainda haveria espaço para repenicar o pudim flan, imaginam mentalmente as três senhoras à mesa, orgulhosamente a rebolar? Quem madrugou no almoço, como nós, já cruzou a fronteira dos cafés. Os restantes, interrompem a salada russa, o chorizo 100% Bolota Maldonado, ou o alho francês assado, com pinhões e vinagrete de mel e limão. Aprontam-se os streamings possíveis nos telemóveis (em breve a televisão há-de estar operacional, se quiser vir ver a bola) apuram-se os ouvidos, deixa-se que o tema faça cama enquanto o prato seguinte não chega à mesa. Não é todos os dias que um primeiro-ministro se demite. Mas também não é todos os dias que João Rodrigues abre um restaurante novo. Vamos por isso apresentar-lhe o Canalha.

A História

Longe de ser um fim, antes o começo de uma nova etapa. Foi assim que em junho de 2022 João Rodrigues anunciava a sua saída do Feitoria, 13 anos e uma estrela Michelin depois. Primeiro para se dedicar mais a fundo ao seu Projecto Matéria, a plataforma lançada 2016 para divulgar e mapear pequenos produtores nacionais. Dos corredores do fine dining para um conceito de proximidade reforçado ainda mais pelo seu formato Residências, que fez do país de lés a lés o restaurante por excelência do chef (este fim de semana estará no Alentejo).

Entretanto, a sociedade com o grupo Paradigma (que também detém em Lisboa espaços como o Ofício, o Lota D´Ávila e o Café do Paço) deu novos frutos nesta nova morada fixa. É assim que nasce o Canalha. “Desde que saí [do Feitoria], a ideia era fazer projetos em que houvesse uma liberdade grande, todos eles diferentes, que no futuro possam fazer sentido em conjunto. Primeiro a ativação com o Residências, depois de um trabalho de anos com o Matéria, agora este restaurante Canalha. O que há em cada um deles é uma identidade muito própria que tem a ver com o que sou e com o que gosto. Os produtores que conheço, as viagens que faço, as pessoas que trabalham comigo, isso estará sempre lá de alguma forma”, descreve o chef.

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© Joana Freitas

O resultado é assim um restaurante “sem um super conceito associado”, que pretende ser apenas um sítio onde as pessoas se venham divertir, onde possam comer e beber bem, para qualquer ocasião. “Queremos muito que seja colorido pelas pessoas em si, onde haja barulho e se vejam jogos de futebol”. Quanto ao nome escolhido, tem dupla verente. Por um lado, faz eco dos restaurantes que o chef tanto aprecia em Espanha, de rua, com uma “atitude um bocadinho irreverente, aberta, barulhenta e descontraída, onde se cozinha muito produto.”. Por outro, a atitude dos miúdos, com a traquinice própria da idade. “A minha avó é do Porto e chamava-nos muito ‘canalha’. Lembro-me sempre dessa energia, de ser irrequieto. É isso que queremos, sem estarmos cheios de modas ou protocolos”.

O Espaço

“É um restaurante novo?”, pergunta um curioso, arriscando a entrada. Chegados a este parágrafo a resposta é óbvia. É no 270B da Rua da Junqueira, onde antes funcionou o restaurante Alecrim no Prato, que este Canalha abriu portas. “Apareceu-nos este espaço, no timing ideal. As coisas conjugaram-se. Não estamos fora da cidade mas estamos numa rua longa que é numa zona de bairro.”

© Joana Freitas

Em modo soft, ou sem pressas, em bom português, como prescreve o espírito da casa, começou a servir no final de outubro e inaugurou oficialmente esta terça-feira. Tem estado completo e até agora cerca de 90% dos clientes são portugueses. Desde logo tem sido um entra e sai de chefs, amigos e qualquer estômago em geral que procure uma mesa portuguesa sem revivalismos. “É um espaço super democrático onde queremos que as pessoas venham todos os dias. Não queremos grandes rótulos. É um restaurante como eram vários restaurantes antigos em Lisboa que eram pontos de encontro no bairro, onde se ia almoçar, jantar”, define João Rodrigues.

Logo à entrada, uma montra dá as boas as vindas. É daqui que acena tudo o que é fresco e do dia, objeto da sugestão dos empregados, para que aproveite o melhor de cada estação e a vontade aprenda a conviver com a frustração temporária. Ou como diria uma voz avisada ao nosso lado, “vale a pena esperar por maio e pela temporada das favas”. Verdade.

© Joana Freitas

Do lado esquerdo, o balcão, ou barra, com dez lugares. Coube ao atelier de arquitetura Lado afinar o design que se estende ao conjunto de mesas — destaque ainda para os separadores em madeira que conferem um ar mais reservado aos recantos –, com tampos de mármore e disposição despretensiosa. Louça e talheres Vista Alegre com toque retro (o mesmo que ressalta das ventoinhas no teto), copos baixos que evocam o melhor das paragens descontraídas do país vizinho. “Conseguiram pegar muito bem no briefing que foi feito e dar-lhe uma vivência própria.  Demos uma lavagem de cara por dentro e uma proposta de comidas diferente também.”

Tudo rematado com o discreto charme da simplicidade eficaz. Ao fundo, à saída da cozinha, de frente para a sala, João Rodrigues dá o último dos retoques aos pratos antes de seguirem para as mesas.

A Comida

Para esta dinâmica em que os pratos vão surgindo de conversas que se desfiam sem urgências, e sem a atitude de um super menu pensado, a casa conta com uma cúmplice relevante, Lívia Orofino, com quem João Rodrigues trabalhou no Feitoria, e que aqui chefia a cozinha e se desdobra na azáfama atrás do balcão. “Quando surgiu a oportunidade de fazer este espaço, a ideia foi pensar em alguém que se encaixasse perfeitamente neste modelo que queríamos, que tivesse uma capacidade técnica muito boa, sensibilidade muito própria, maneira de ser simpática e proativa, e a escolha recaiu muito naturalmente sobre a Lívia”.

A tortilha © Joana Freitas

Vamos então à parte mais relevante desta jornada — não desfazendo as alterações na cúpula do Governo — a comida, feita para saborear a solo ou partilhar com carinho (o que, sugerimos, potencia a experiência). Mas antes de mais, o derradeiro aviso para os mais desatentos: “Não somos uma tasca nem uma taberna, somos um restaurante, restaurante.”

Para começo de conversa, conte com dois pratos do dia, peixe e carne, e ainda sopa, tudo “sem qualquer tipo de reinvenção ou revivalismo”, comida “pura e dura de casa, de conforto”, sentencia o anfitrião. “Pode vir almoçar, come ali na barra, bebe um copo e vai embora. Pode gastar pouco ou muito, dependente daquilo que quer comer”.

Provámos a alhada de raia e ainda os panados (que acompanham com arroz de cenoura), as duas referências desta terça-feira em que faria todo o sentido rebatizar esta rubrica para “Cuidado, está a ferver!”, dada a intensidade do clima e qualidade do saboreado.

© Joana Freitas

À parte de grelha soma-se uma outra mais de partilha, assente na carta fixa, que obedece a uma ideia e segue a lógica da sazonalidade, integralmente voltada para o produto — que também pode ser a peso, a partir da montra. “Cozemos, grelhamos, fazemos frito, como o cliente quiser ou sugerimos. É um espaço muito permeável ao que há disponível. Ainda agora falava disso, não posso ter percebes se estão no defeso ou se não possibilidade de os pescadores os irem apanhar. Só se comprasse num grande distribuidor e não é isso que queremos para este espaço.”

Se há ausentes nesta altura, não é menos natural que vão aparecendo cogumelos, ou alcachofras, produtos estrela da época. Como é já natural levarem comida aos vizinhos ou servir cafés aos espaços ao lado, não fosse este um restaurante de bairro.

© Joana Freitas

Mas vamos ao que pode encontrar na carta fixa. Para entrada, salada russa (4,50 euros), chorizo 100% Bolota Maldonado (6 euros), ou ainda pastéis de bacalhau (3,20 euros). Nos principais, ninguém sairá defraudado com a lula de toneira grelhada e manteiga de ovelha ou a tortilha aberta de camarão e cebola. Bom, e que dizer do Raspado de presa de vaca Simental Alex Castani, ou do (não nos fugirá da próxima) carabineiro salteado com ovo frito e batata Laura Raul Reis (29,50 euros). “Temos este trabalho de curadoria, saber de onde vêm os enchidos, as cebolas, as batatas, mas não queremos fazer disso uma coisa demasiado impositiva. Vai acontecendo ao longo da refeição.”

No capítulo das sobremesas, espaço para os clássicos infalíveis, do marmelo com gelado à mousse de chocolate ou ao pudim flan.

No futuro, durante a tarde, vão querer explorar uma parte de copos e comida simples. Aos sábados, tome nota, vai haver cozido de quinze em quinze dias. Nas bebidas, a carta de vinhos também disponíveis a copo, é uma seleção a cargo do sommelier Daniel Rocha e Silva.

Marmelo e gelado a rematar © Joana Freitas

A terceira etapa da relação de João Rodrigues com os atuais sócios irá concretizar-se em 2024, com a abertura do Monda. “É um projeto de vida. Começou muito com o trabalho que foi feito com o Matéria, vai numa linha muito mais holística, esse sim já terá uma componente criativa e pessoal muito grande.”

Trata-se de um restaurante pequeno, com cerca de 20 lugares, e ainda oito quartos. O projeto está inserido numa reserva natural agrícola e 5 hectares de produção, localizando-se na região do Oeste, a 500 metros do oceano. “É um sítio completamente de destino em que queremos que seja uma experiência global, desde a viagem até chegar e ficar, com várias atividades.“. Uma fórmula que promete ser muito mais de fine living do que de fine dining. “Acho que o fine dining entrou numa fase em que se faz sempre o mesmo, estão confinados a quatro paredes. Queria algo mais global. O Monda quer ser isso, pretende estar envolvido numa paisagem, numa comunidade e vivê-la a 100%. É mais uma forma de estar do que um jantar, mais integrado e descontraído”.

“Cuidado, está quente” é uma rubrica do Observador onde se dão a conhecer novos (e renovados) restaurantes e cartas.