“Santa-Bárbara foi pioneiro em Portugal, ao ter acompanhado uma arte que nascia [naquele período] internacionalmente, e é pioneiro porque as suas capas [de álbuns] são conceptuais e têm mensagem”, afirmou o investigador Abel Soares da Rosa, autor do livro, em declarações à agência Lusa.
“Em Portugal não era muito comum [haver] capas conceptuais — as capas eram até horrendas com uma foto do artista numa pose comercial”, pouco mais, afirmou o investigador, à agência Lusa. O autor realçou “a dinâmica [de José Afonso] e a sua luta pela liberdade que cantava, as suas ações, e é claro que Santa-Bárbara tinha em comum esta dinâmica, esta luta”. José Afonso “conseguiu perceber que havia algo mais a fazer além da grande revolução e influência que teve na música portuguesa”, por isso, “as capas passaram também a ter um papel nessa mensagem”, encontrando no designer José Santa-Bárbara o parceiro ideal.
Para o investigador, a perceção de José Afonso “é algo notável”, porque “conseguiu entregar e perceber que podia haver algo mais que podia estar ao serviço da sua mensagem, da sua utopia”. No contexto da época, os discos LP tinham um formato de maior dimensão (31X31cm), e quando expostos nas montras, eram imediatamente vistos, antecipando o seu conteúdo.
Entre Santa-Bárbara e José Afonso, além da afinidade artística havia também uma cumplicidade política. José Santa-Bárbara não era um desconhecido da polícia política do regime de ditadura que vigorou em Portugal até 1974. Em 1959, os estudantes das três academias da época — Lisboa, Porto e Coimbra — enviaram uma carta ao então presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar, “o ditador”, pedindo a sua demissão. Entre os 402 signatários, como João Tito de Morais, Fernando Assis Pacheco, Jorge Campinos e Isabel do Carmo, estava também José Santa-Bárbara.
A investigação de Abel Soares da Rosa levou-o à consulta do processo do artista nos processos da polícia política, a PIDE, atualmente depositados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. É um dos documentos apresentados neste livro. “Santa-Bárbara estava vigiado pela PIDE e, o curioso, é que sendo ele um homem solidário e comprometido na luta contra a ditadura e pela liberdade de expressão, por sorte, nunca foi apanhado pela polícia política”, afirmou Soares da Rosa.
“As duas músicas que nós, portugueses, associamos à festa da liberdade e ao 25 de Abril de 1974, têm capas e arranjos gráficos do José Santa-Bárbara”, disse Soares da Rosa à Lusa, referindo-se a “Grândola, Vila Morena, que saiu pela Orfeu”, no álbum Cantigas do Maio, em EP e em single, e a “E Depois do Adeus, de Paulo de Carvalho, o que não deixa de ser extraordinário”.
José Santa-Bárbara e José Afonso conheceram-se “num encontro ocasional” de amigos, em meados da década de 1960, no bairro lisboeta dos Olivais, e “a partir daí começou a existir cada vez mais proximidade, até que José Afonso, quando vinha a Lisboa, passou a ser visita regular da casa de Santa-Bárbara e até já lá tinha um pijama”, recordou Soares da Rosa. Nestas estadias, “José Afonso apresentou Santa-Bárbara a outros dois ilustres vizinhos do bairro dos Olivais, [o compositor] José Niza [1938-2011] e o [músico e cantor] Adriano Correia de Oliveira [1942-1982]”.
José Afonso e o músico Rui Pato ensaiaram na casa de José Santa-Bárbara temas do álbum Contos Velhos Rumos Novos (1969). Sobre este disco, Soares da Rosa recordou “uma história muito engraçada”. Na casa de Santa-Bárbara havia um candeeiro de plástico rígido, de design italiano, e a meio de uma sessão de ensaio “José Afonso, sempre à procura de ritmos e novos sons, virou-se para Santa-Bárbara e disse que precisava de qualquer coisa para fazer o ritmo. Santa-Bárbara lembrou-se daquele candeeiro de plástico com estrias, e com um lápis fez o ritmo, lá acabou por sair no tema Era Noite e levaram-no. Está registado no disco”.
O livro resgata o título de um dos raros artigos que chamou à atenção para o trabalho gráfico de Santa-Bárbara, assinado por Fernando Assis Pacheco e publicado no jornal Musicalíssimo, em novembro de 1972, com uma entrevista ao artista plástico a propósito da edição do álbum Eu Vou Ser como a Toupeira (1972), de José Afonso. Para a capa deste disco, Santa-Bárbara foi buscar a entrada de um Dicionário Lello, sobre subversão, onde se lê “ser a pessoa que subverte a instituição pelo interior”, “só que a palavra ‘subverte’ desaparece misteriosamente na imagem da capa, [mas] fica subentendida”.
A capa do livro Santa-Bárbara Capista do Zeca é uma referência ao álbum Cantigas do Maio (1971), reproduzindo também a mão de Santa-Bárbara, num fundo preto, preenchida com versos de uma das cantigas de José Afonso. Em Cantigas do Maio, a mão em primeiro plano reproduz o texto manuscrito da canção que dá nome ao álbum, culminando o gesto que deixa atrás de si o espetro ótico, do mais ‘frio’ violeta, para o vermelho mais ‘quente’.
O livro inclui os diversos esboços para as nove capas de José Afonso que Santa-Bárbara concebeu, seu tema central, assim como os poemas do autor de Cantares de Andarilho (1968), com contexto, e investigação sobre o artista plástico de 87 anos, “cuja obra todos conhecem, mas não sabem a quem pertence”. Soares da Rosa dá como exemplo “o logótipo dos Comboios de Portugal [CP]”. O investigador inclui ainda uma cronologia biográfica do artista plástico e da sua obra. Soares da Rosa recorda assim exposições de Santa-Bárbara, painéis de azulejo que criou, como os da estação ferroviária do Pragal, em Almada, cartazes, arranjos gráficos de livros, pictogramas, peças de design industrial e de design gráfico que concebeu.
José Afonso não foi o único artista a ter capas feitas por Santa-Bárbara, outros seguiram-lhe o exemplo. É o caso de Mário Viegas, com A Invenção do Amor e Outros Poemas de Daniel Filipe (1973), Adirano Correia de Oliveira com Notícias d’Abril (1978), Fausto e O Despertar dos Alquimistas (1985), Ana Firmino e Carta de Nha Cretcheu (1989), Andrés Stagnaro e Entre Dos Lunas (2009), ou o mais recente Não Lugar (2023), de O Gajo, entre outros.
“Não há dúvida, José Afonso e a sua obra, a [a sua] discografia, ganharam outra mensagem importante com o trabalho de Santa-Bárbara”, sentenciou Soares da Rosa, estendendo esse fator a “outros artistas de nomeada do nosso panorama”. A primeira capa que José Santa-Bárbara fez para José Afonso foi Cantares do Andarilho (1968), seguindo-se Contos Velhos, Rumos Novos (1969) e Traz Outro Amigo Também (1970). “O impacto desta capa foi muito grande”, recorda Soares da Rosa. Foram “utilizadas fotografias ‘photomaton’, que simulam as fotografias da polícia política”. Na relação de Santa-Bárbara com José Afonso sucederam-se Cantigas do Maio (1971), Eu Vou Ser Como a Toupeira (1972), Venham Mais Cinco (1973), Enquanto Há Força (1978), Fados de Coimbra e Outras Canções (1981) e Como Se Fora Seu Filho (1983).
O livro, que é apresentado na sexta-feira, às 18:00, na Biblioteca-Espaço Cultural Europa, em Campo de Ourique, em Lisboa, pontua “os momentos essenciais da vida de Santa-Bárbara e da sua obra”. Na apresentação participa o músico João Afonso, sobrinho de José Afonso. Sobre o artista plástico, Soares da Rosa referiu “o sentido de humor notável e uma real modéstia”.
A obra inclui um texto introdutório de José Santa-Bárbara, autor de um “trabalho notável que são aquelas capas icónicas”, concluiu o investigador.